Catharina Lopes Scodro
Larissa Cristina Margarido
Ontem, 22 de julho, comemorou-se o Dia Internacional das Trabalhadoras Domésticas, mas, afinal, há o que se celebrar?
O trabalho doméstico ocupa uma posição única no sistema capitalista, especialmente nos países em desenvolvimento com um alto nível de desigualdade social, como o Brasil. Tal posição resulta de várias características e da própria natureza desse emprego, como sua inserção no escopo do trabalho reprodutivo, sua dominação de gênero, e sua associação, em maior ou menor grau e considerando especificidades regionais, com a dominação de classe e raça, em uma dinâmica que reproduz as desigualdades estruturais das sociedades, reforçando a marginalização econômica, política e social das mulheres que estão em sua base (MARGARIDO, 2022, p. 17-18).
No presente ensaio, resumimos alguns aspectos sobre o trabalho doméstico, no Brasil e no mundo, a serem revisitados nesse dia de luta.
História
O trabalho doméstico é uma ocupação extremamente antiga, vinculada ao legado histórico mundial do patriarcado, da escravidão, do colonialismo e de outras formas de servidão, de modo que, mesmo em suas manifestações contemporâneas, continua a perpetuar hierarquias baseadas em gênero, raça, origem étnica, nacionalidade, entre outras (OIT, 2009, p. 5).
No Brasil, a trajetória de luta da categoria reporta à meados da década de 1930, quando Laudelina de Campos Melo – mulher negra e trabalhadora doméstica – fundou o primeiro sindicato do país, a Associação Profissional de Empregados Domésticos, em Santos (SP). Nas décadas seguintes, a batalha pelo reconhecimento do trabalho doméstico e conferência de direitos à categoria foi, em diferentes momentos, entrecruzada com outros movimentos, em especial os classistas-sindicais, o negro e os feministas (ver MARGARIDO, 2022, p. 120-127), o que possibilitou que a atuação das trabalhadoras lograsse uma dimensão nacional (BERNARDINO-COSTA, 2015, p. 65).
Como explica o sociólogo brasileiro amefricano Joaze Bernardino-Costa (2008, p. 70), a luta da categoria trata-se de um movimento triplo das trabalhadoras: (i) de resistência contra sua exploração econômica; (ii) de re-existência individual, por meio da “afirmação da existência humana de cada trabalhadora doméstica”; e (iii) de re-existência coletiva, pela proposta de refundar a sociedade brasileira com base em novos valores.
Extensão
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2021), há 57,6 milhões de trabalhadoras domésticas em todo o mundo, o que representa um crescimento de 12,8% em apenas 5 anos.
Em 2010, o Brasil já se tratava da segunda nação com o maior número absoluto de trabalhadoras domésticas no mundo, majoritariamente negras, pobres, com baixa escolaridade e mães (MARGARIDO, 2022, p. 18). Em 2018, chegou a um contingente de mais de 5,7 milhões de mulheres, que compunham a maior categoria ocupacional ainda aberta para trabalhadoras no país – destas, 3,9 milhões eram mulheres negras (63% da categoria) (PINHEIRO et al., 2019, p. 11-12).
(Ausência de) Proteção Jurídica
Ainda que a OIT tenha verificado progressos na cobertura jurídica dessas profissionais à nível mundial, em especial com a aprovação da Convenção n.º 189 e da Recomendação n.º 201, relativas ao Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos, na 100ª Conferência Internacional do Trabalho da OIT, em 2011, o acesso à direitos básicos ainda não é uma realidade para grande parte da categoria, a qual permanece exposta “a riscos químicos, ergonômicos, físicos, psicossociais e biológicos, e são especialmente vulneráveis à violência e ao assédio” (OIT, 2021, p. xxi).
No Brasil, o emprego doméstico permanece sendo caracterizado por altos índices de informalidade, salários baixos, níveis rasos de proteção e relacionamentos abusivos e estratificados com as(os) empregadoras(es) (ACCIARI, 2019, p. 44). Se, no processo de abolição da escravatura, passaram-se quase 60 anos entre a primeira iniciativa normativa de abolição do tráfico negreiro e a emancipação total das(os) escravizadas(os), a disputa pela regularização do trabalho doméstico já dura mais de um século.
A incansável luta das trabalhadoras domésticas, sindomésticos, associações, representantes e aliadas(os) foi marcada por décadas de pequenas realizações e desconsideração política e somente começou a ser revirada em 2008, quando teve início o processo que levou à proposição, votação e aprovação da PEC das Domésticas (ver MARGARIDO, 2022, p. 105-133).
Ainda assim, a PEC não gerou os efeitos positivos esperados, e, pior: (i) com a crise econômica nacional, que teve início em 2014, notou-se a transição dos contratos de trabalho doméstico mensais para os diários, bem como a redução da formalização da categoria como um todo; e (ii) com a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), com início em 2020, a categoria passou por intenso processo de remarginalização, sendo colocada entre a essencialização forçada e o desemprego (MARGARIDO, 2022, p. 221; 236-244).
Segundo dados de 2018 (PINHEIRO et al., 2019, p. 23-26; 34-37):
somente 28,6% das trabalhadoras domésticas encontravam-se formalizadas – índice que sofre variações quando consideramos o tipo de contrato: enquanto 43% das mensalistas possuíam carteira de trabalho assinada, somente 9% das diaristas encontravam- mesma situação;
apenas 39% da categoria era filiada à previdência social;
o rendimento médio mensal das trabalhadoras domésticas era de R$ 877,00, valor 8% abaixo do salário mínimo e que oscilava significativamente:
o de acordo com a raça das trabalhadoras – as brancas recebiam, em média, 18,8% a mais do que as negras em todo o país;
o entre as regiões do país;
o segundo o tipo de contrato – as mensalistas auferiam rendimentos médios quase 25% superiores aos das diaristas; e
consoante a existência ou não de vínculo empregatício – as trabalhadoras com carteira assinada recebiam salários, em média, 80% superiores aos das informais.
Considerações Finais
Ainda que o cenário apresentado seja extremamente desanimador, devemos – sempre e, em especial, nesse dia de luta – reconhecer a responsabilidade e o mérito integrais das trabalhadoras domésticas por todas as conquistas até o momento, e saudar a força inabalável dos sindomésticos e associações que, mesmo em meio ao desesperador cenário atual, permanecem lutando. Afinal, reconhecer a trajetória dessas mulheres é conceber o Sul Global como um centro que grita, luta e clama pelo reconhecimento de direitos (ACCIARI, 2019).
Referências:
ACCIARI, Louisa. Decolonising Labour, Reclaiming Subaltern Epistemologies: Brazilian Domestic Workers and the International Struggle for Labour Rights. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 41, n. 1, p. 39-63, 2019.
BERNARDINO-COSTA, Joaze. Sindicatos das Trabalhadoras Domésticas no Brasil: Um Movimento de Resistência e Re-Existência. Revista Latinoamericana de Estudios del Trabajo, Bogotá, v. 13, n. 20, p. 69-90, 2008.
BERNARDINO-COSTA, Joaze. Decolonialidade e Interseccionalidade Emancipadora: A Organização Política das Trabalhadoras Domésticas no Brasil. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 30, n. 1, p. 147-163, 2015.
MARGARIDO, Larissa Cristina. Entre Discursos e Silêncios: A Aprovação da PEC das Domésticas na Câmara dos Deputados. Cotia: Margem da Palavra, 2022.
OFICINA INTERNACIONAL DEL TRABAJO (OIT). Trabajo Decente para los Trabajadores Domésticos. Conferencia Internacional del Trabajo, 99ª Reunión. Informe IV(1). Ginebra: OIT, 2009.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Tornar o trabalho digno uma realidade para o trabalho doméstico: Progressos e perspectivas dez anos após a adoção da Convenção (N.º 189) sobre o Trabalho Doméstico em 2011. Genebra: OIT, 2021.
PINHEIRO, Luana; LIRA, Fernanda; REZENDE, Marcela; FONTOURA, Natália. Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: Reflexões para o Caso Brasileiro a partir dos Dados da PNAD Continua. Textos para Discussão IPEA, Brasília, n. 2528, 2019.
PINTO, Cleide Pereira; ACCIARI, Louisa; BRITES, Jurema Gorski; PEREIRA, Luiza Batista; CASTRO, Mary Garcia; MONTICELLI, Thays Almeida (Orgs.). Os Sindicatos das Trabalhadoras Domésticas em Tempos de Pandemia: Memórias da Resistência. Santa Maria: FACOS–UFSM, 2021.
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Catharina Lopes Scodro é mestranda em direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP), com apoio de bolsa CAPES, e bacharela em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (2019), com apoio de bolsa FAPEMIG. Atualmente, é pesquisadora da Coordenadoria do PPG Acadêmico e Pesquisa da FGV Direito SP e assistente editorial da Revista de Estudos Empíricos em Direito (REED).
Larissa Cristina Margarido é doutoranda e mestra em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP, com apoio da bolsa Mario Henrique Simonsen de Ensino e Pesquisa (desde 2019) e da Bolsa Taxa PROSUC-CAPES (2020), e graduada pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP). Atualmente, é pesquisadora da Coordenadoria de Pós-Graduação Acadêmica e Pesquisa, e do Núcleo de Justiça Racial e Direito, ambos da FGV Direito SP.
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