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O país organizado para si

Christopher Loureiro Kapáz

Gabriel da Silva Prado


A Constituição de 1988 foi promulgada em meio a um sentimento geral oscilante. Havia otimismo de finalmente caminhar para a superação do passado autoritário, mas estava igualmente presente o ceticismo diante do necessário empenho político para dar efetividade ao texto constitucional que nascia.


A busca por essa concretização do estado social marca a célebre participação do então senador Darcy Ribeiro no programa Roda Viva de 1991. A certa altura da entrevista, o intelectual dispara que o Brasil nunca foi organizado para a sua própria gente e, talvez por isso, não tivesse dado certo ainda.


A geração de articulistas que compõem a coletânea de trabalhos reunidos no livro Reconstrução: o Brasil nos anos 20, organizado por Felipe Salto, João Villaverde e Laura Karpuska (2022), parecem estar imbuídos desse mesmo sentimento geral de construção da república para a sua própria gente. Autodeclarando-se como a geração que se insere nos debates pós-redemocratização, os organizadores indicam de forma clara que entendem estar ocorrendo uma interrupção no processo histórico de construção da nação, que vinha sendo acompanhado do fortalecimento das instituições, controle dos índices inflacionários e crescimento econômico.


Essa interrupção tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro, acompanhado de sua gestão autoritária, marcada pelo desprezo à democracia e suas instituições. Novos desafios surgem no horizonte do combate ao autoritarismo, como a compreensão papel das mídias digitais na corrosão da democracia, a agenda antiambientalista no momento em que o mundo se prepara para uma mudança de matriz energética e o isolamento diplomático em um cenário internacional multilateral.


Do outro lado, os velhos dilemas nacionais também são reforçados pela nova onda autoritária. Os debates sobre regulamentação da mídia, a prestação social deficitária, a falta de progressividade tributária, a crise fiscal e os desafios redistributivos e de concentração de renda são exemplos desse fenômeno. Os novos e velhos desafios da República Brasileira são enfrentados pelos autores ao longo do livro de forma propositiva e profunda.


A governabilidade está no social


Nascida de um texto constitucional transformativo, a Nova República apostou alto nas políticas sociais de direcionamento estatal para melhorar os índices sociais do país. Cerca de metade do livro se dedica à análise dessas políticas, abordando temas como educação, primeira infância, direitos humanos, saúde e habitação.


Os autores reconhecem méritos de governos nacionais e subnacionais anteriores, fugindo do lugar comum do ineditismo experimental. Daniel Barros,por exemplo, em seu capítulo sobre a inclusão produtiva dos jovens, elogia as políticas adotadas pelos governos petistas para ampliar o acesso às universidades, sem deixar de destacar fragilidades, como o volume pequeno de vagas no ensino superior tecnológico e as bolsas permanências desatualizadas. Suas propostas para a área vão desde um ensino médio que conecte o aluno ao seu projeto de vida à ampliação e aprimoramento do ensino técnico e da Lei do Aprendiz.


Em sua contribuição, Talita Nascimento desdobra como políticas educacionais de caráter colaborativo vêm tendo resultados positivos e podem mostrar o caminho para a retomada da educação em um Brasil pós-autoritário. A autora utiliza como referências o Programa de Alfabetização na Idade Certa no Ceará e o Ensino Médio Integral em Pernambuco.


Por fim, outro dos capítulos retoma a situação em que, respondendo aos descrentes de que o novo texto constitucional traria estabilidade e governança para o país, Ulysses Guimarães declarou ao final da constituinte que “a governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis”. Essa relação entre governabilidade e prestação social é explorada pelos articulistas João Villaverde e Rodrigo Brandão em sua investigação das falhas do atual sistema representativo e das desconexões partidárias com o eleitorado nacional.


Para a reconstrução da república, talvez seja necessária a reconstrução do modelo atual de prestação social. Nesse sentido, os artigos compartilham certo entendimento a respeito da importância de políticas públicas colaborativas entre os entes federados, assumindo que desenhos institucionais podem apontar para soluções efetivas desde que contem com bom planejamento. O país já experimentou isso em governos anteriores com resultados positivos e os autores se empenham em apresentar esse processo de evolução institucional.


Economia e diagnóstico


Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O papel do Estado no desenvolvimento econômico do país parece ser descrito como intermediário ao longo do livro. Braúlio Borges indica que um debate sério e técnico sobre o assunto deve evitar estereótipos como o “Estado mínimo” e o “Estado interventor”. Nesse rumo, o autor parece seguir a agenda econômica dos outros colaboradores que tratam do tema ao longo do livro.


Em tom simples e didático, ideias como a busca pela retomada da progressividade tributária, a abertura econômica e a diminuição da concentração bancária são apresentadas em paralelo com a descrição dos movimentos políticos atuais e do contexto geral da nação. A sessão que trata da retomada da economia do país apresenta, ainda, uma retomada do histórico das políticas econômicas das últimas décadas. Amplificam-se, assim, as ferramentas disponíveis ao leitor.


Os caminhos para se superar a crise orçamentária e fiscal são descritos de forma ampla em mais de um artigo. Argumenta-se que a harmonização das regras fiscais poderia dar mais estabilidade à economia nacional; bem como a criação de regras flexíveis para momentos de crise econômica e uma melhoria do gasto público.


Felipe Salto, Guilherme Tinoco e Vilma Pinto dão as maiores contribuições nesse tema. De maneira pragmática, os autores encaram com bons olhos o teto de gastos públicos enquanto política que diminui os juros e aumentam a confiança na economia brasileira. No entanto, criticam as prioridades orçamentárias escolhidas pelos políticos e a inclusão do investimento público no teto.


Talvez a maior contribuição dessa sessão do livro seja o claro diagnóstico dos principais problemas econômicos enfrentados pelo país. Complexidade tributária, isolamento comercial, alto spread bancário, desigualdade, espaço difícil para os negócios, orçamento público capturado por interesses políticos, instituições fracas e baixos níveis educacionais são alguns deles. Isso é relevante justamente porque o mapeamento dos gargalos e das maneiras possíveis destacá-los é um aspecto fundamental das políticas econômicas capazes de gerar crescimento econômico sustentável e com equidade.


As pautas nacionais ausentes


Delegado, comandante, major, coronel. As urnas de 2018 foram preenchidas por nomes com insígnias como essas, e a eleição chegou a colocar um capitão reformado na cadeira de presidente. A segurança pública esteve no centro do debate eleitoral, mas, ainda assim, está ausente no livro ora discutido, apesar de sua proposta de criar novas bases para a reconstrução do Brasil.


Sem dúvidas, essa é a lacuna mais notável da obra. O combate à violência urbana, cujas pesquisas apontam estar na centralidade nas preocupações dos brasileiros, continuará na retórica bolsonarista e de outros candidatos da extrema direita de maneira irresponsável e populista. Nesse sentido, o livro perdeu a oportunidade de apresentar políticas públicas para a área e de difundir o trabalho de especialistas que discutem segurança pública com base em evidências e no respeito aos direitos humanos.


Há outras pautas centrais no debate público brasileiro que pouco aparecem nos artigos. Exemplos são a distribuição de terra e os conflitos fundiários rurais, citados apenas superficialmente como forma de combater o desmatamento da Amazônia e como uma sugestão de política habitacional a ser adotada, respectivamente. Igualmente ausentes estão temas como o saneamento básico, que se fortaleceu na agenda pública após o novo marco regulatório; o sistema de Justiça,sempre presente como ponto nevrálgico para a concretização dos direitos humanos no Brasil; e as relações de trabalho, as quais ganham foco com o advento da Quarta Revolução Industrial, da uberização do trabalho e das discussões presidenciais para revogação ou manutenção da reforma trabalhista de 2017.


Dentre os temas abordados, houve aqueles cujas propostas de mudança apresentam caráter estruturante – e, portanto, contam, em sua maioria, com análise mais elaborada – e aquelas para os quais são apresentadas soluções incrementais. Ao tratar sobre a imprensa, por exemplo, Laura Karpuska e Vadson Lima acertam ao ressaltar que os canais de comunicação precisam ser mais diversos e que sua atuação em bairros comunitários e periféricos mais ampla. No entanto, não é abordado na contribuição o tema da concentração de propriedade da mídia e sua regulamentação.


Similarmente, Irapuã Santana, em seu capítulo sobre a integração racial, também é preciso ao defender a implementação efetiva do Estatuto da Igualdade Racial. No entanto, ao mesmo tempo em que ficam ausentes propostas mais concretas e basilares, para além das cotas raciais no serviço público, da distribuição proporcional de verbas eleitorais para candidaturas negras e da conscientização do setor privado.


Caminhos para um país na voz do milênio


"Apesar de ser uma obra dirigida para a RE-construção, penso que, diante do quadro ora apresentado, precisamos ainda construir pontes para a devida integração nacional entre brancos e negros no país", escreve Santana em seu capítulo. O articulista vai, assim ao encontro do que os organizadores propõe em sua apresentação: o objetivo não é reconstruir o país nos moldes do período pré-Bolsonaro.


A nossa democracia já era muita falha para servir como modelo, tanto que foi por ela que o atual presidente ascendeu ao poder. A referência da obra é, ao em vez disso, o processo histórico de construção das políticas públicas após a longa ditadura militar. Traçam-se elogios às decisões que fortaleceram as instituições, a economia e o bem-estar social, bem como críticas às escolhas políticas que lograram o país ao atraso.


Os trinta e um autores do livro miram a construção de um país ainda distante, pautado na justiça social, no desenvolvimento econômico, no respeito ao meio ambiente e no fortalecimento democrático. Distante, mas possível. A fórmula é dada nos 20 capítulos do livro: políticas públicas bem avaliadas, com base em dados e evidências, utilizando casos de sucesso sem desconsiderar a importância da participação popular e da coordenação institucional.


A busca do caminho a ser trilhado parece presente na voz do milênio, que transcende gerações e resume séculos da história do Brasil. Elza Soares cantava: "Eu preciso encontrar um país/ Onde a saúde não esteja doente/ E eficiente, uma educação / Que possa formar cidadãos realmente/ Eu preciso encontrar um país/ Onde a corrupção não seja um hobby/Que não tenha injustiça, porém a justiça/Não ou se condenar só negros e pobres”. Reconstrução: o Brasil nos anos 20 nos oferece caminhos para encontrar esse país.



Obra resenhada: SALTO, Felipe; VILLAVERDE, João; KARPUSKA, Laura. Reconstrução: o Brasil nos anos 20. Brasil, Saraiva Jurídicos, 2022.

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Christopher Loureiro Kapáz é bacharel em administração pública pela Fundação Getulio Vargas (FGV), ex-trainee na Folha de São Paulo e assessor parlamentar no Congresso Nacional.

Gabriel da Silva Prado é bacharel em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e mestrando em Direito e Desenvolvimento na Fundação Getúlio Vargas (FGV).



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