Felipe Luciano Pires
O que um assistente social, uma soldada da polícia militar, um atendente em um centro municipal de vagas de emprego e uma médica que atende pacientes do pronto socorro de um hospital público possuem em comum? Todos podem ser considerados burocratas de nível de rua.
Trata-se de conceito amplamente utilizado em estudos de Ciência Política e Administração Pública em referência aos agentes públicos que estão na linha de frente da implementação de políticas públicas, conforme explanado Laura de Barros em artigo publicado aqui no JOTA. Eles são a faceta mais visível e materializada da relação entre Estado e sociedade, uma vez que realizam interações cotidianas com a população para a concretização de políticas públicas, moldando suas decisões em função das relações com os usuários dos serviços públicos.
Nessa toada, os burocratas de nível de rua podem ser caracterizados pelas suas condições de trabalho, pois, em regra, enfrentam substanciais cargas de trabalho aliadas a recursos (financeiros e humanos) escassos e pressões dos usuários por melhoria na qualidade e na oferta de serviços públicos. De outro lado, em razão da sua posição, os burocratas possuem poder para gerenciar discricionariamente os recursos dos serviços públicos pelos quais são responsáveis.
Essa constatação é relevante para a discussão proposta pelo presente texto. Um primeiro olhar desatento poderia indicar que os burocratas de nível de rua estariam amplamente vinculados aos atos normativos legais e infralegais que definem suas atividades, não havendo margem para escolhas próprias. Entretanto, em uma análise mais detida, verifica-se que em seu cotidiano de trabalho esses agentes tomam uma série de decisões com relevante impacto na prestação de serviços públicos, muitas vezes elaboradas em questão de segundos e como resultado de peculiaridades do ambiente em que estão inseridos.
Assim, observa-se que um olhar mais atento para os burocratas de nível de rua, bem como para a literatura que estuda esses agentes públicos, pode trazer importantes contribuições para reflexões acerca do direito público.
Isso porque a relação entre a doutrina de Direito Administrativo e o atual contexto da formulação, implementação e avaliação das políticas públicas vem apresentando certa dissonância. Os postulados e as categorias doutrinários desse ramo do Direito mostram-se insuficientes tanto para subsidiar soluções inovadoras propostas pelos burocratas, quanto para compreender como os diferentes níveis hierárquicos da burocracia realizam suas atividades no âmbito da Administração Pública.
Isso pode ser observado no conceito jurídico de “discricionariedade”, tradicionalmente definido a partir da dualidade traçada com a ideia de “vinculação” por autores tradicionais de Direito Administrativo, que buscam elencar elementos que possibilitem a identificação de atos discricionários e de atos vinculados.
Em outras palavras, segundo essa visão, discricionariedade seria a liberdade dos burocratas avaliarem ou decidirem com base nos critérios de conveniência e oportunidade formulados próprios integrantes da Administração Pública, enquanto as normas jurídicas teriam o papel de estabelecer os limites para essa discricionariedade. Nesse sentido, o oposto da discricionariedade seria a vinculação, observada em situações em que a legislação define apenas um determinado comportamento como correto, não deixando espaço para escolha por parte do burocrata.
Essa visão do Direito Administrativo resulta na imposição de dificuldades para criação de desenhos de políticas mais ousados e que evitem a mera reprodução do que foi sempre feito, não consistindo necessariamente na opção mais eficiente. Além disso, a concepção do dualismo entre ato discricionário e ato vinculado também impede experimentações que permitiriam alterações e correções durante a implementação de políticas públicas, conforme observado por Flávia Annenberg em pesquisa que abordou o descompasso entre as categorias tradicionais de Direito Administrativo e a estruturação jurídica do Programa Bolsa Família.
Diante disso, a necessidade de repensar o conceito de “discricionariedade” é reconhecida como uma das importantes tarefas dos pesquisadores da área de Direito Administrativo, uma vez que se trata de categoria doutrinária construída em um contexto da Administração Pública substancialmente diverso ao observado atualmente.
Ao reconhecer isso, Egon Bockmann Moreira, em artigo publicado no JOTA, defende a “discricionariedade 4.0”, que blindaria a escolha dos agentes públicos e afastaria a ideia de analisar, do ponto de vista subjetivo, se uma decisão seria melhor ou pior, tendo como foco o procedimento decisório, a competência da autoridade e a tempestividade da tomada da decisão.
Antes de traçar possíveis linhas para a modificação do conceito de “discricionariedade”, entretanto, é necessário dar um passo atrás e discutir seus pressupostos.
Pensar a discricionariedade em contraposição à vinculação permite apenas uma visão superficial acerca do funcionamento atual da Administração Pública, limitando o horizonte de soluções que podem ser formuladas pelos burocratas.
Uma possível saída para essa dualidade seria a adoção uma visão mais empírica, aproximando-se dos conceitos de discricionariedade empregados por pesquisas sobre burocracia de nível de rua realizadas em outras áreas de conhecimento, sem com isso deixar de lado as particularidades trazidas pelo olhar jurídico.
Peter Hupe e Michael Hill afirmam que, do ponto de vista da Sociologia, a essência de qualquer atividade desenvolvida por burocratas é a existência de algum grau de discricionariedade, apesar do controle e supervisão exercidos por alguma autoridade superior.
Em outras palavras, sempre que há alguma delegação de competência, a pessoa ou entidade delegante “perde”, de certa forma, o controle de determinados aspectos. Nesse sentido, o campo da Administração Pública propõe uma visão mais ampla, que considera como fontes de discricionariedade não somente as regras jurídicas, mas também: (i) a estrutura institucional da organização em que estão alocados os burocratas; (ii) a maneira pela qual os órgãos de controle atuam; e (iii) as circunstâncias nas quais é realizado o trabalho.
Dialogando com as ideias propostas por Egon Bockmann Moreira, um possível caminho para a ressignificação do conceito jurídico de discricionariedade perpassaria por considerar que, ao descartar a contraposição com a ideia de vinculação, sempre haverá algum grau para que o burocrata atue de maneira discricionária. Esse grau de discricionariedade será maior ou menor a depender de como estarão dispostos, no caso concreto, esses três elementos referidos no parágrafo anterior.
De todo modo, é certo que a necessidade de se repensar o conceito de discricionariedade do ponto de vista do direito público abre uma interessante agenda de pesquisa empírica que envolve a aplicação do direito por burocratas, principalmente os de nível de rua.
Uma possível abordagem inicial seria observar quais são os argumentos utilizados por esses atores públicos para justificar suas decisões cotidianas e em que medida eles se valem de normas jurídicas para a construção dessa argumentação. A partir da efetivação dessa e outras linhas de pesquisa, a categoria jurídica da discricionariedade poderá vir a se tornar uma ferramenta analítica com potencial explicativo acerca do atual contexto enfrentado por cada um dos diferentes atores responsáveis pela formulação, implementação e avaliação de políticas públicas.
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Felipe Luciano Pires é mestre pelo programa de Mestrado Acadêmico em Direito e Desenvolvimento da FGV Direito SP (2021) e possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2017).
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