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Quem tem medo de ler sobre racismo?

Ana Luiza Bandeira

Ana Luiza Villela de Viana Bandeira


Silvio de Almeida participa da coleção Feminismos Plurais, da Editora Pólen, contribuindo com a publicação “Racismo Estrutural”, no ano de 2019. O livro tem como objetivo destrinchar a categoria “racismo” e mapear as diferentes formas com que, no Brasil, esse conceito deve ser compreendido como forma estruturante da vivência política, econômica, ideológica e cultural. Para tanto, o autor divide seus capítulos em binômios, estabelecendo como ponto em comum o próprio racismo e alterando a lente de análise, como: “racismo e política” e “racismo e direito”.


Em diálogo constante com outros autores e autoras que escrevem sobre racismo, Almeida estabelece pontes importantes entre uma perspectiva acadêmica que se esforça para identificar o racismo localizado em uma perspectiva de país/cultura e não como conceito que paira de forma ilimitada e inanimada. Em toda a obra, o autor desafia as categorias conscientes e inconscientes do racismo, categorizando a existência de uma “concepção individualista”, que trata o racismo como preconceitos subjetivos de patologia ou anormalidade, em contraposição à “concepção institucional”, que enxerga o racismo como resultado dos comportamentos das instituições, distribuindo privilégios a partir da raça. Segundo o autor, o racismo estrutural vai além dessas duas concepções, porque faz parte de um processo em que “condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas” (p. 24).


Para esta resenha, destacarei três pontos positivos e dois pontos provocativos para debate sobre o texto. A começar pelos positivos, ainda que o campo de estudos sobre o racismo no Brasil tenha se expandido de forma considerável nos últimos anos, escrever sobre o racismo em bases acadêmicas e aliado a um projeto de uma militância política polissêmica é inovador, pois é uma forma de usar a dimensão estrutural do racismo para desafiar fronteiras de conhecimento que normalmente circulam apenas em espaços acadêmicos isolados. Assim, o autor é didático, usa linguagem acessível e trabalha com suas próprias referências, de forma a promover conexões entre disciplinas que normalmente vêm separadas de uma compreensão racializada.


Em segundo lugar, a obra perpassa diversas formas com que o racismo se manifesta, construindo exemplos concretos que ilustram as dimensões com as quais o racismo se faz parte constitutiva das relações sociais estabelecidas entre os sujeitos e entre os sujeitos e o Estado. Quando dialoga com a questão da economia, por exemplo, o autor se esforça para ir além da concepção do senso comum de que a desigualdade no mercado de trabalho é uma herança direta da escravidão, e se alinha a uma segunda corrente que considera que o racismo faz parte do capitalismo moderno, pois este se nutre da desigualdade:


para se renovar, o capitalismo precisa muitas vezes renovar o racismo, como, por exemplo, substituir o racismo oficial e a segregação legalizada pela indiferença diante da igualdade racial sob o manto da democracia (p. 113).

Por último, há uma construção histórica do racismo feita especificamente para o cenário brasileiro – o autor compreende que os diálogos com outros autores estrangeiros, como Achille Mbembe (p. 19) e Ellen Meiksins Wood (p. 21) são frutíferos porque dão elementos transversais sobre como podemos compreender o racismo em outros países, mas há uma necessidade de construção político-acadêmica que dê conta de mapear a estruturação do racismo no Brasil. A forma única com que a democracia racial foi incorporada no país, segundo Almeida, ilustra como o racismo foi utilizado para a construção da interpretação de país tanto à direita quanto à esquerda (p. 109).


Quanto ao primeiro ponto para debate sobre o texto, proponho a discussão sobre a profundidade no conceito de estrutura, que ora parece ser a estrutura marxista, da qual sabemos que o autor possui conhecimento e domínio, e ora parece ser sinônimo de instituição, pois há pouca diferença entre as manifestações institucionais do racismo e a experiência do racismo em si. Ainda que Almeida escreva que quer diferenciar o racismo estrutural do racismo institucional (p. 24), ao longo do texto essa distinção fica menos clara. No caso da discussão sobre representatividade, por exemplo, o autor compreende que a presença de pessoas negras em espaço de poder e prestígio social não é suficiente para combater o racismo, uma vez que:


a representatividade é sempre institucional e não estrutural, de tal sorte que quando exercida por pessoas negras, por exemplo, não significa que os negros estejam no poder (p. 69).

Ele ainda estende o argumento para dizer que: (i) a pessoa lançada ao cargo de liderança pode não vocalizar a pauta da minoria; e (ii) ainda que esteja alinhada e preocupada com essas pautas, pode não ter sucesso em alterar a estrutura. Diante desse diagnóstico, é difícil compreender então qual seria o papel da representatividade: se, segundo o autor, a representatividade é sempre institucional, por que declarar a sua ineficiência a partir da incapacidade de alterar a estrutura? Em última instância, deveria esse elemento ser suprimido do debate e da luta do movimento negro, por ser, talvez, uma espécie ilusória de transformação, ou existem formas mais profundas com que a representatividade pode, a longo prazo, tornar-se estrutural?


Nesse mesmo sentido, o segundo ponto para debate futuro se dá pela construção da diferença entre estrutura, Estado e direito – a dimensão estrutural do racismo pode acarretar em uma fusão entre essas dimensões, o que enfraquece possíveis soluções, já que, se algo é constitutivamente estrutural, poucas ações serão capazes de atacar todos os elementos de uma única vez. Se o próprio autor defende que a identificação dos conceitos é etapa essencial para a mobilização e ação antirracistas, de que forma proposições críticas poderiam enriquecer-se de algumas delimitações teóricas que já levam em conta a dimensão racializada?


Não há como negar que o próprio posicionamento do autor eleva o debate sobre o racismo no Brasil, através de sua obra e posição política ativa. Ao desafiar os limites entre as disciplinas e, ao mesmo tempo, uni-las em pontos críticos em comum, “Racismo Estrutural” nos brinda em apresentar um novo degrau de reflexão sobre o papel que os estudos sobre o racismo no Brasil possuem, em uma meta-obra sobre resistir e escrever.



Obra Resenhada: ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.


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Ana Luiza Villela de Viana Bandeira é advogada, graduada em Direito pela FGV Direito SP (2014) e mestra em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2018). Atualmente trabalha como Assessora Nacional em Audiência de Custódia pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

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