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Um defeito de cor | dica da professora Luciana Gross Cunha

Com este artigo, inauguramos a coluna “Direito e Cultura” do Blog D&D, em que serão apresentados livros, filmes, exposições, peças de teatro e afins que se conectam, de alguma forma, com as temáticas de Direito e Desenvolvimento. Ou seja, aqui você encontra sugestões de maneiras mais leves de se inteirar dos debates do campo, sem abrir mão de momentos de lazer.


Nessa primeira edição, a professora Luciana Gross Cunha (FGV Direito SP) recomenda um livro que considera formativo para brasileiros em geral: Um defeito de cor (2006), assinado por Ana Maria Gonçalves, uma ex-publicitária tornada escritora. Embora as 900 páginas de extensão assustem, nossa convidada da semana garante que a leitura é fácil e prazerosa.


Conforme explica Luciana, trata-se de uma obra de ficção, mas também de história do Brasil, já que o enredo perpassa o período colonial, com a participação de figuras históricas que participam da trama. A protagonista, Kehinde, é uma menina africana que é escravizada e chega à cidade de Salvador da Bahia ainda criança. Ao longo da história, que começa na África, Kehinde ou Luiza – seu nome de batismo e como pessoa escravizada – passa, da Bahia, pelo Rio de Janeiro, Santos, São Paulo e Campinas. Há, ainda, um momento em que retorna ao território africano, e, enfim, realiza uma viagem final de volta para o Brasil.


Nesse percurso, Kehinde – e o leitor – se deparam com todo o tipo de violência que marca a formação da sociedade. Essa, por sua vez, é descrita a partir de nuances regionais distintas dentro do Brasil Colônia. Como pano de fundo, tem-se, ainda, o funcionamento do comércio internacional e local e a criação das instituições políticas do país, com a passagem da família real portuguesa pelo Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que a protagonista está morando na cidade.


Para acadêmicos do Direito e Desenvolvimento, Luciana sugere que é relevante prestar atenção na conexão entre, de um lado, a formação das instituições brasileiras, de outro, as relações sociais e raciais vigentes em cada região do país. Essa análise é útil “para a gente poder entender de onde vem as relações atuais entre estado e sociedade, entre estado e sociedade civil branca ou sociedade civil racializada”. Nesse sentido, a professora considera que a obra complementa leituras clássicas da Sociologia do Brasil, como Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda.


Na parte final do livro, Kehinde retorna para a África, passando ela mesma por um “choque de identidade” ao se deparar com costumes e comportamentos que não é mais capaz de reconhecer. Nesse ponto do livro, chama a atenção a importância dos escritos decoloniais e de ouvirmos as vozes dos afrodescendentes para melhor compreendermos a formação do nosso país. A diáspora negra, as relações comerciais organizadas a partir do escravagismo, sem falar do transplante de modelos eurocêntricos para a África e América Portuguesa, são marcas históricas que fazem parte do enredo do livro. Assim, a narrativa toca na questão de como as dinâmicas de comércio intranacional e inter-regional se moldam a partir das relações do poder e do que serve ou não aos grupos dominantes em cada contexto. Nesse escopo, há discussões a serem feitas sobre diversos temas, como as relações de trabalho, a lógica patriarcal e o racismo.


Por fim, há uma conexão direta entre a história de Kehinde e a formação da elite jurídica paulista, passando pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Mas sem spoilers – vai ser preciso ler para descobrir qual é!


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Sobre a obra:

Editora: Record

Ano: 2006 (28ª edição)

Idioma: Português

Número de páginas: 952

Sinopse: Fascinante história de uma africana idosa, cega e à beira da morte, que viaja da África para o Brasil em busca do filho perdido há décadas. Ao longo da travessia, ela vai contando sua vida, marcada por mortes, estupros, violência e escravidão. Inserido em um contexto histórico importante na formação do povo brasileiro e narrado de uma maneira original e pungente, na qual os fatos históricos estão imersos no cotidiano e na vida dos personagens.

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