Minibio: Doutor (1998) e mestre (1995) em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo e graduado em Direito pela mesma instituição (1995). Atualmente, é professor da FGV Direito SP, coordenador do projeto CAPES-Print/FGV "O Direito na Era Digital" e coordenador do Observatório do Ensino do Direito da mesma instituição.
Entrevistadoras: Ana Beatriz Guimarães Passos, Larissa Cristina Margarido e Mariana Morais Zambom (respectivamente, doutorandas e mestranda na FGV Direito SP).
"Parabéns pela iniciativa, acho uma coisa muito importante mesmo, acho que é uma válvula de escape. E uma coisa bonita é que a gente conseguir narrar a nossa história ajuda a enfrentar as dificuldades. Se a gente consegue falar sobre os nossos desafios, nosso sofrimento mesmo, vamos chamar pelo que é né, se a gente consegue colocar o nosso sofrimento numa narrativa mais ampla ele se torna mais suportável, mais compreensível e às vezes nos ajuda, inclusive, a fazer com que aos poucos ele vá desaparecendo. Acho que o pior sofrimento é você não conseguir criar uma narrativa de sentido para sua vida, então acho que esse blog é muito bacana por causa disso."
1. O senhor pode nos falar sobre a sua trajetória na vida acadêmica?
"Vamos começar no momento em que eu tinha que fazer vestibular. Eu sempre brinco que, desde jovem, gostava dessas questões mais amplas, do tipo, para citar o Caetano [Veloso], "existirmos: a que será que se destina?". Então eu pensei em fazer filosofia na época do vestibular. Já lia muito quando moleque, lia para xuxu, gostava muito de ler. Então eu fiquei pensando “puxa vida, mas se eu fizer filosofia, o que eu vou fazer da vida? Vou acabar sendo professor”. Aí eu fiz direito e acabei sendo professor (rs).
Fui fazer direito, não gostei nem um pouco do curso, fui gostar no quinto ano, quando eram classes menores e tal. Achei a faculdade interessante, mas o curso desinteressante, intelectualmente muito pouco desafiador, tem um lado muito frustrante de você estudar pouco e tirar 9 e 10, entendeu?
No quinto ano foi muito legal. Então eu me formei super bem e comecei a trabalhar e eu estava realmente muito pouco feliz nessa situação. Eu sempre conto essa história que me marcou muito: eu estava fazendo um negócio super chato que era uma inicial de indenização por acidente de automóvel, então tive que pegar três orçamentos; mas eu estava me sentindo completamente miserável fazendo aquilo e, no escritório, havia uma super prateleira, com Revista dos Tribunais encadernadas, aquelas coisas, e lá em cima eu vi, não sei porque estava lá, o “Morte e Vida Severina” do João Cabral. Daí eu pensei, “acho que não tem problema se, só por 10 minutinhos vai, eu ler um pouco de poesia”. Daí eu peguei e começa lá “O meu nome é Severino, não tenho outro de pia” e fui lendo. Aquilo é de uma beleza tão grande, eu fui seguindo o Severino descendo o Capibaribe. E quando eu estou ali entretido nessa leitura, entrou o chefe, era o doutor Cássio, uma grande figura. “E aí Zé, tudo bom, tudo jóia?” e eu falei “ô doutor Cássio, tudo bem?” e aí pegou um livro de que precisava e saiu da sala. E eu pensei, “pô, o que que eu estou fazendo?”. O cara está me pagando, estou lendo “Morte e Vida Severina”, eu pensei, “não, isso não pode ser assim”. Mas eu não sabia o que queria fazer ainda.
Eu tinha um dinheiro guardado e resolvi fazer um mochilão, e quando eu voltei para o Brasil, isso em 1986, (viu como estou velho?), um professor de inglês do Colégio São Luiz saiu de uma hora para outra, em julho, conseguiu uma bolsa para Inglaterra e saiu, sendo que as aulas começavam em agosto. Eu tinha 23 anos, o padre me conhecia, perguntou se eu não queria dar aula, e para uma série super difícil que é a oitava série que hoje em dia é o nono ano, e eu tinha diploma da Cultura Inglesa, isso me permitia dar aula. Eu, completamente irresponsavelmente, falei “claro, por que não?”.
Bom, para a minha surpresa e acho que até para a surpresa do padre que me chamou, eu fui hiper bem, os alunos gostaram, eu me sentia super realizado, era uma diferença completa com o que eu sentia no escritório. No escritório eu falava “putz, por que eu tenho que trabalhar?” e no colégio eu ficava ansioso para começar a estar em sala. Foi muito bom, daí eu percebi “pô, esse negócio aqui é bom, mas eu quero fazer isso direito”. Aí eu fui fazer letras inglês-português. Fiz todo o curso de inglês, mas não terminei a graduação porque, nessa época, eu já estava dando cerca de 40/50 horas de aula por semana. Sim, era uma brutalidade, aulas de 45 minutos né, mas eu dava aula na Cultura Inglesa, no São Luiz, onde você puder pensar eu dava aula também.
Então um professor meu falou “você não quer fazer o mestrado direto?”, e eu respondi, “mas eu não terminei a graduação em letras ainda”, e ele explicou, “não, faz o seu mestrado em cima do seu diploma de direito”. Eu aceitei. Em certa parte, isso me prejudicou um pouco na carreira. Porque nos concursos de direito eu sou um cara de letras e no concurso de letras eu sou um cara do direito. Mas no fim tudo deu certo.
Depois eu fiz um doutorado muito bom, sendo que já estava dando aula de literatura inglesa na universidade desde 1988. Foi nessa época que comecei a me aproximar da FGV, porque eu sempre dei aula de literatura desde um ponto de vista político-ideológico. Quer dizer, como a literatura nos ajuda a entender as matrizes ideológicas que nos fazem pensar o mundo de uma determinada forma. E a questão do justo, da justiça, claro, sempre foi uma questão que me interessou muito. Então, o direito não foi um total acidente. Quando a FGV começou o curso de graduação em direito, eles me chamaram para dar aula de Artes e Direito e aula de Legal English. Eu montei os dois cursos, nenhum deles existia na graduação no Brasil e ambos foram super bem-sucedidos, graças a Deus e, sobretudo, graças às alunas e aos alunos que foram de uma generosidade enorme com a proposta. A partir disso fui desenvolvendo minha carreira aqui.
Mas assim, foi um pouco, aparentemente um acidente, mas foi muito legal, uma coisa que... acho que estou plenamente realizado. Acho que isso fica muito evidente quando a gente conversa assim, né, “estou feliz com o que eu faço, não é algo que eu faço burocraticamente”. Mas foi assim minha carreira, muita angústia, com muita incerteza, reagindo a coisas que eu não sabia muito bem se iam dar certo. Acho que uma coisa que eu fiz bem foi largar o escritório. Isso não foi tão fácil porque eu já estava ganhando mais ou menos bem, e esta foi uma coisa que eu pensei, porque dinheiro vicia e eu percebi que se começasse a ganhar mais do que eu já estava ganhando, eu não sei se eu teria a iniciativa de jogar tudo para o ar. Então era naquela hora ou nunca. Acho que essa foi uma decisão boa que eu tomei. Pensei, “olha, nesse momento não é o salário que se deve priorizar”. E não sei o que iria acontecer, a gente nunca sabe, né, o que iria acontecer se eu tivesse tomado outra decisão, mas estou feliz com o que aconteceu por causa dessa decisão.
2. O que fez o senhor começar a se aprofundar em algumas questões, como o futuro da profissão jurídica, metodologia de pesquisa, a docência?
"Tem uma coisa engraçada, eu gosto muito da docência, mas eu acho que nós temos que sempre colocá-la em um contexto mais amplo. Porque a escola e a faculdade são instrumentos de reprodução social muito importantes, é para isso que elas existem. Para ensinar as pessoas a se comportarem, a pensarem e a trabalharem. Portanto, eu acho que se nós queremos pensar sério a nossa profissão docente, precisamos pensar como nos situamos nesse processo de reprodução simbólica que é essencial para o processo de reprodução material do capitalismo. E que tem aspectos muito bons e outros muito complicados. Essa é uma coisa.
A outra coisa que eu acho importante na docência, e que me interessa muito também, é o fato de você está lá pelo outro, isso eu acho uma coisa muito bonita. Eu não estou em sala por mim, eu estou em sala pelo outro. Eu acredito firmemente que nós, seres humanos, somos seres dialógicos. A gente só se completa mesmo como um indivíduo no diálogo com outro e o fato de eu achar, portanto, que a aula é um espaço dialógico essencialmente exige que eu compreenda como o outro pode compreender; exige que eu compreenda não o que eu quero dizer, mas como eu acredito que o outro possa me escutar. Esse é um trabalho que me educa e é um trabalho que coloca o outro no centro da cena. E isso eu acho muito difícil, muito sofisticado. Claro, primeiro porque a gente sempre supõe coisas sobre os outros que podem não ser verdade. Mas também nos ajuda a compreender melhor o próprio objeto que estamos trabalhando.
Para dar um exemplo que vocês já ouviram em alguns encontros, então um pouco de paciência. Eu tive que apresentar o tempo verbal present perfect para alunos da, naquela época, sétima série. Eram alunos de 13 anos, em geral, e que estavam começando a desenvolver o raciocínio abstrato. Repara que na sétima série os alunos começam a ter geometria, umas matérias diferentes. A história já não é mais história do Brasil, mas começa a ser história geral, como a gente chamava naquela época. Mas, para entender present perfect, para você não dar uma aula mané, de preencher espacinho “simple past ou presente perfect”, que não adianta patavinas, você precisa que as crianças tenham uma noção da diferença entre tempo verbal e tempo cronológico e você precisa que elas tenham uma noção do que seja aspecto verbal. E essas não são coisas banais. E eu tinha na minha frente meninos e meninas de 13 anos que são totalmente...; uma fase muito complexa e delicada para as meninas porque muitas delas são estão tendo a primeira menstruação, então esse é o grande assunto da sétima série para elas e isso aumenta muito o gap entre as meninas e os meninos em termos de comportamento, atenção. É aquele o pessoal que estava na minha frente. Ao tentar desenvolver um tipo de dinâmica e de aula que permitisse a esse grupo concreto, que tem essas referências de mundo, apreender o que seja o present perfect, eu tive que entender melhor sobre o que eu estava falando e tive que entender melhor para quem eu estava falando. Então eu acho que muitos dos debates que eu fui fazer posteriormente, por exemplo, entre as estruturas de linguagens e as estruturas ideológicas, que é uma coisa que me fascina ainda hoje, eu devo a essas crianças, eu devo a essas meninas e meninos que estavam na minha frente me olhando com uma cara de “do que esse cara vai falar?” e isso foi muito marcante para mim, muito formador e eu sinto que essa é a coisa mais importante da docência: você estar em diálogo com o outro, é pelo outro que você está lá. E isso não quer dizer que você não vá trazer o seu, que você não vá ter autoridade, pelo contrário. Mas então essa foi uma questão que me levou para a docência, a noção da reprodução simbólica, “o que nós estamos fazendo? O que a escola está fazendo? O que a universidade está fazendo?”. Eu acho que nós, da universidade, muitas vezes nos colocamos fora do jogo capitalista, é como se a gente criticasse o mundo e não participasse dele. Eu acho que estamos participando bastante, inclusive em nossas dinâmicas internas.
Outra coisa é “como é que a gente constrói o pensamento?”. E um terceiro ponto que me interessa muito, que eu já toquei um pouco, é a questão da linguagem. Acho que já falei um pouco antes da gente conversar, da questão da narrativa e do sofrimento, mas nós somos a história que nós contamos sobre nós mesmos, o país é a história que nós contamos sobre o país. Repara que, em grande parte, a crise brasileira hoje é o colapso de uma narrativa que durante longo tempo foi hegemônica, que é a narrativa de um país fraterno, sem racismo, sem conflitos, sem luta de classes, etc. Essa ideia sempre foi, claro, uma narrativa, mas é uma narrativa que passava por verdade, ela servia, inclusive, de fator explicativo para várias coisas, o senso comum ainda registra isso: "o brasileiro". Agora temos um colapso dessa narrativa e o surgimento de outras narrativas, claro, de conflito, de opressão estrutural, de exclusão estrutural, que são muito importantes e muito críticas dessa narrativa que era hegemônica até então, mas que são, também elas, narrativas. Também não podemos assumi-las como um fato bruto do mundo. Então, a noção de que o mundo é a história que nós contamos sobre ele e que as relações entre os seres humanos são as histórias que nós contamos sobre elas, faz com que a questão da linguagem seja supremamente importante e isso sempre me fascinou. E acho que eu persigo isso um pouquinho. Talvez por isso que eu fale tanto, também."
3. Dentro da FGV, o senhor é um dos professores que mais trabalha com interdisciplinaridade, pesquisas que envolvem outras áreas do saber. Só que hoje em dia cada vez mais é uma preocupação para a/o pós-graduanda/o em Direito que, se ela/e, por exemplo, fizer doutorado em antropologia, talvez tenha concursos não possa prestar, porque exigem formação completa em Direito. Como o senhor vê isso na carreira atual acadêmica em Direito?
"Eu acho que a gente tem... dois pontos que eu gostaria de mencionar aqui. Primeiro que a gente tem um descompasso entre um discurso sobre a interdisciplinaridade e a prática institucional. A universidade é interdisciplinar em todos os sentidos. Já falei que o termo "disciplina" significa três coisas: é uma forma de pensar, é uma matéria dentro da grade e é uma forma de punir. A universidade é disciplinar e a gente se legitima como acadêmico pela especialização em uma disciplina, a modernidade entende que o conhecimento é uma especialização crescente.
Já demos risada outro dia porque você vê sempre que os jornais falam “especialistas afirmam que...”. Ninguém fala “generalistas afirmam que...”. Porque o cara que entende mesmo é um especialista. Então a estrutura profunda da universidade ainda hoje é uma estrutura disciplinar, inclusive para os seus mecanismos de controle, de feudo no Brasil, de personalismo, de patrimonialismo. Agora, o discurso é um discurso que celebra a interdisciplinaridade, é “precisamos ser plurais, precisamos pensar fora da caixa”. Tanta gente falando que precisa pensar fora da caixa que acabou a caixa, não tem mais caixa, porque está todo mundo pensando fora da caixa. Mas você vê um descompasso muito evidente, acho que em toda parte do mundo, mas no Brasil isso me parece muito evidente, e me parece inclusive emblemático de outros aspectos da nossa vida político-social, de um discurso aparentemente muito liberal, livre, solto, “vamos juntar vários saberes”, e na prática concreta vão perguntar, vão olhar na sua bibliografia quem você está lendo, quais são as suas referências, de onde você está vindo, com quem você está dialogando, e se você não tiver a presença absolutamente marcada desta disciplina isso pode desmontar o seu trabalho. A especialização que aparece no conhecimento universitário não é sem relação com a especialização do capitalismo industrial.
Então, acho que existe um descompasso de uma espécie de... quase uma esquizofrenia, porque nós estamos todos falando de interdisciplinaridade, de transdisciplinaridade, mas na hora em que você vai prestar um concurso, não é nem questão de você ser de letras ou direito, “pera um pouquinho Larissa, mas você fez toda a sua carreira em termos de gênero, agora você vai querer dar teoria política?”. Isso mostra que nós temos um descompasso muito forte entre práticas e discursos, inclusive dentro da universidade, e mais, eu acho que tem... isso é uma briga, digamos assim, mais teórica que eu tenho, eu tenho um problema com a questão da interdisciplinaridade, não com a proposta em si, mas com o fato de que ela, a meu ver, reforça a noção de disciplina como unidade básica a partir da qual vou pensar o curso. É um pouco como falar internacional. Por que a gente passou de direito internacional para direito global? Porque o Estado-nação vai perdendo a sua centralidade, então, na verdade, não é internacional, a coisa não é verdade entre estados-nacionais, mas cada vez mais é de uma outra ordem, então passa a se falar de direito global, porque eu estou desnaturalizando o Estado Nacional como a unidade básica de reflexão sobre as relações entre os povos, as comunidades etc.
Quando eu falo em interdisciplinaridade, eu estou mais uma vez reforçando a estrutura fundamental moderna da Universidade que entende que a disciplina, nos três sentidos que ela tem, é a base do conhecimento acadêmico, e eu fico pensando que isso é estruturalmente incompatível com uma outra percepção sobre o saber que vá procurar, por exemplo, que o centro gravitacional do discurso vai ser o problema e não a disciplina que vai tentar reduzir aquela compreensão. Agora isso dá um tilt total no sistema porque, como eu falei, a gente se valoriza, inclusive para ganhar dinheiro como advogado, para conseguir sucesso como acadêmico, pela especialização. E mais, se você de fato abandona a noção de disciplina, você automaticamente vê que os seus saberes são muito bons, mas eles são necessariamente parciais e que, portanto, você tem que estar em diálogo constante com pessoas que têm saberes que você não tem. Isso, na minha opinião, é maravilhoso, né, mas o não saber para uma instituição que na superfície se justifica pelo saber é um problema danado. Então, eu sinto que a interdisciplinaridade, no meu modo de ver, é uma tentativa muito importante, muito necessária, acho que ela faz parte de um processo de rompimento do paradigma moderno de disciplina e de compreensão do conhecimento, mas a interdisciplinaridade tem também uma contradição interna, porque ela reafirma aquilo que quer destruir, desconstruir, e, nesse processo, torna ainda mais marcada a presença da disciplina. Isso para não dizer, claro, das relações entre disciplina, grupos de poder e estruturas patrimoniais, que é uma coisa que também existe no Brasil."
4. Professor, falando um pouco sobre descompasso. Estamos passando por um momento de crescente desincentivo à produção científica, as bolsas estão sendo cortadas, os incentivos a formar jovens pesquisadoras/es estão sendo cancelados, ao mesmo tempo em que os indicadores de performance das Universidades estão cada vez mais concentrados em número de publicações. Como você vê uma jovem pesquisadora entrando hoje na academia?
"Acho que tem duas questões importantes que você coloca aí, Ana Beatriz. Uma é a questão da pressão para publicação e a relação publicação-qualidade e outra é a questão do financiamento e dos jovens pesquisadores e da pesquisa e docência como profissão. Acho que são duas coisas que estão ligadas, mas eu acho... já tem um movimento muito grande, e sou simpático a esse movimento, que é desconstruir esses indicadores de produção por número. Inclusive, do ponto de vista mesmo da repercussão de impacto, das medidas de impacto, porque de fato, é possível que se você escreveu uma besteira muito grande, você vai ter muito impacto porque várias pessoas vão querer bater no que você escreveu, então certamente essa forma de mensuração do conhecimento, na minha opinião, primeiro mostra como as chamadas ciências duras colonizaram praticamente todo o discurso sobre a ciência.
Nós somos uma ciência social da linguagem do Direito, nossa lógica é completamente diferente de outras ciências. E, portanto, eu não consigo fazer um experimento a cada 6 meses e publicar resultado, certo? Veja, é muito mais fácil alguém que está estudando, e graças a Deus benditos sejam eles, o vírus da Covid-19, publicar rapidamente vários papers sobre o que foi feito, do que a gente publicar vários papers sobre a crise sociopolítica que decorre da Covid-19. Então, primeira coisa, acho que em qualquer área essa pressão numérica para publicação é problemática, mas para a área das ciências humanas é ainda mais. O meu orientador nos Estados Unidos, um cara fantástico, o Arthur F. Marotti, que é um dos maiores especialistas em século XVII inglês, falou para mim uma vez “Zé, desconfia de qualquer acadêmico que publica mais do que dois papers por ano”. Você não tem o que dizer. Qualquer pessoa de inteligência mediana consegue publicar, escrever papers. Se a pessoa de inteligência mediana tiver uma rede de contatos muito boa, ela vai publicar para muito porque o nosso blind review é, no máximo, peer review, mas em geral, esse negócio do blind não é tão blind assim.
Eu não sou contra algum tipo de controle porque também, todo mundo se acha gênio, o cara não escreve nada porque ele é tão sensível e o mundo é tão abaixo... "não, eu não escrevo porque sabe..." não, tem que ter controle, tem que ter pressão para produção. Mas eu sinto que aí, por exemplo, para pegar o nosso exemplo, na comunidade da FGV, certo, nós temos uma noção de que alguns colegas têm uma contribuição... na verdade, eu acho a nossa comunidade muito forte, sem nenhuma rasgação de seda, mas para cada um de nós, você tem admiração especial por trabalhos de alguns colegas, né, porque tem um texto dele que você acha muito relevante, tem uma colocação que é muito relevante. Você vai ouvi-lo falar, você vai ouvi-la falar quando ela falar sobre isso, né, então pessoas que são referência em vários campos, e essas pessoas naturalmente publicam, mas eu acho que, portanto, esse tipo de controle numérico da produção está sendo absolutamente contraprodutivo e instiga plágio, instiga uma indústria acadêmica de troca de favores péssima, então acho que a gente precisaria ter uma mudança radical aqui. Agora, eu acho que, claro, assim como outras instituições, um modo de controle que tem uma certa dinâmica nos países onde surgiu, nos países do Atlântico Norte, é adaptado para as nossas dinâmicas sociais e políticas no Brasil. Então, se é assim com as outras instituições, por que não seria com o sistema de controle acadêmico? Isso é uma coisa.
Quanto ao corte de verbas, isso eu acho um problema muito grave mesmo. E aqui eu acho que nós precisamos enfrentar uma questão muito complexa. É que nós estamos em um momento político tão desastroso, que qualquer discussão fica mais difícil, mas pensando agora, abstraindo aqui, nós precisamos ter uma política de pesquisa para o país, precisamos ter... um país tão bonito como o nosso, mas tão pobre nesse sentido, com uma população que sofre tanta coisa, a pesquisa é indispensável. Entretanto, os recursos para a pesquisa são recursos que têm que ser aplicados pensando no país como um todo, ou seja, nós precisamos ter uma política de pesquisa, uma política de educação séria, uma política de educação que pense o Estado. Mas eu acho que nós estamos, hoje, com uma visão muito individualista e privatista da formação, a formação é para o indivíduo, como se... ele conseguiu sucesso na carreira, e acho que é uma coisa muito boa, nós precisamos fazer isso, mas acho ainda uma visão insuficiente ou até mesmo distorcida do projeto de educação. A educação é central para a qualidade de vida do país, das relações etc. e é fundamental para a gente quebrar certos ciclos de dependência que nos oprimem há tanto tempo, então que tipo de profissional, que tipo de conhecimento, que tipo de área nós queremos desenvolver no país? Quer dizer, para formar alguém que consiga ser um bom pesquisador, sei lá, em engenharia nuclear, certo, como país eu tenho que pensar por que alguém faria engenharia nuclear no Brasil. Tem mercado para isso? Não, não tem, mas eu quero ter engenharia nuclear? Ou nas ciências humanas, por que alguém estudaria... que nem a Larissa está estudando e vocês estão estudando, questões de gênero, de racismo etc.? Por que alguém estudaria isso? É de interesse do país que a gente estude isso, que a gente entenda melhor essa estrutura? Então eu tenho que ter uma política de Estado para a educação, tem que pensar que, para a gente evitar a fuga de cérebros... (o que vai de brasileiro para o exterior, certo?), para a gente evitar essa fuga de cérebros, a gente precisa entender que a educação não é um processo individualista e privatista, a formação é uma formação para o coletivo, no limite, com recursos coletivos para o coletivo e eu acho que, então nesse sentido, Ana Beatriz, eu acho que o nosso problema é ainda mais fundo do que a falta de financiamento que, nesse momento, acho que o adjetivo que melhor qualifica é obsceno. Mas é a falta de uma noção, na minha opinião, mais pública da educação e de uma política de Estado para a educação, uma política que não pense o miúdo, e isso implica decisões muito fundamentais sobre que tipo de país nós queremos ser daqui a 20 anos, 30 anos, 50 anos. É isso que nós precisamos pensar, precisamos pensar um pouquinho para a frente do nosso nariz."
5. Que dica que o senhor daria, considerando a sua experiência própria, para navegar essa confusão que é a pós-graduação no Brasil?
"Tenho a impressão de que a gente quando vai entrar, ficamos pensando “será que eu vou fazer mestrado, doutorado, mas aí o que eu vou fazer?”. Acho que, normalmente, as pessoas que pensam em seguir estudando é porque tem algum interesse na vida acadêmica, pode ser docente, pode não ser docente, pode ser pesquisador. Nesse sentido, não precisamos ficar angustiados para saber “mas como é que vai ser daqui a 5 anos, daqui a 10 anos?”. Sim, a gente tem uma noção do que pode ser, né, mas nesse momento o seu interesse, por exemplo, parece que faz sentido você pelo menos dar uma chance para isso, sim. Então... acho que com um pouco mais de leveza nisso, sabendo que é um momento da sua vida, é uma certificação, não define quem você é, claro, pode te ajudar no teu percurso acadêmico, mas esse é um momento; e dentro do mestrado, dentro do doutorado, você vai perceber coisas que não dá para perceber de fora, não adianta, falando assim “nossa, mas como vai ser quando eu tiver meu filho?”. Tem coisa que não dá para saber, só vai saber quando você tiver seu filho. Mas de maneira geral você pensa que isso pode ser um projeto bacana, sim. Então acho que seriedade e leveza não são coisas opostas, na minha opinião, em geral seriedade e leveza são coisas que caminham juntas. Tá bom, é um projeto, então eu vou fazer na FGV, vou fazer em outro lugar, então acho que essa angústia tem mesmo, tem aquelas ponderações de sempre, de questão econômica, de linha, de quem você conhece, de quem pode ser legal para o tema e a gente sabe aos pouquinhos, a gente vai tateando e daí vai respondendo.
Acho que tem que aceitar um pouquinho que, de fato, nós não temos o controle sobre as coisas, né, temos controle sobre algumas decisões. Mas há um grau de incerteza, de instabilidade, de insegurança, e isso não é a periferia da vida humana, isso é o centro da vida humana. Tem uma fala engraçada de uma série que eu sempre guardo, fala assim “Olha, frequentemente na vida nós vamos ter problemas, mas com frequência ainda maior nós vamos ter soluções para esses problemas”. Então, claro, a gente vai vivendo como pode. O que eu sinto é isso, se a gente fizer as coisas com grandeza de alma, e não sacrificar o que realmente acha importante por conveniências passageiras, acho que a gente tem chance de curtir muito a viagem. Acho que só essa atenção. A gente, claro, tem que fazer compromissos, a gente precisa comer, pagar as contas, né, mas tem um limite para o compromisso, tem algumas coisas que não valem a pena fazer. E a gente não sabe muito bem, então vamos tocando, acho que não precisa estar muito angustiado, e depois entender que a angústia faz parte do processo. Uma das coisas que a gente aprende é a lidar com a angústia. Assim como você tem uma atleta que aprende a lutar com a dor e com a fadiga muscular porque ela entende que isso é parte de ser atleta, certo, não é que ela não sinta dor ou fadiga muscular, mas ela entende que aquilo faz parte do processo que ela está vivendo e que ela quer viver para ser uma atleta, a gente também vive uma angústia, uma ansiedade, uma expectativa e sim, é isso mesmo, faz parte dos seres humanos."
6. Pensando no seu percurso, que outras dificuldades o senhor enfrentou? Quais momentos mais lhe marcaram nesse processo?
"Eu dei aula em muita faculdade, em muito lugar. Acho que primeiro, para quem vai abraçar a carreira acadêmica, você vai dar aula em muitas instituições pelas quais talvez você tenha menos do que uma admiração profunda, certo? Você vai dar aula de temas e situações que são muito menos, muito diferentes, muito aquém ou muito diversas daquilo que você gostaria de fazer. E é isso mesmo, são dificuldades com as quais a gente precisa aprender. Estar sempre exposto diante dos alunos, o dinheiro para pesquisa é curto mesmo, como vocês já colocaram, então se você quer ser acadêmico full time, você tem que ganhar dinheiro dando aula, tem que dar uma aula atrás da outra e tem que dar aula para diferentes situações. Eu já dei aula em auditório com mais de 100 pessoas. Então acho que as dificuldades são essas, seja ser um acadêmico profissional, ser um professor profissional... A FGV é completamente fora da curva nesse sentido e as faculdades públicas são fora da curva, mas 90% das pessoas, 95% das pessoas não vão ter essa condição de trabalho. Você vai ser horista, com o salário mais baixo possível, provavelmente se você tiver uma titulação muito alta, a sua chance de ser contratado em alguns lugares cai drasticamente porque os caras não querem pagar doutor e mestre. Então esse é o mercado concreto que nós temos. É um mercado em expansão? Sim, mas é isso, nossa condição de trabalho é essa mesma, você vai dar aula, como eu dei por tanto tempo, dar aula toda noite até as 11 horas em instituições que, por exemplo, do tipo... as aulas estão suspensas porque os alunos sei lá o que, mas você tem que ir lá, passar o cartão na catraca e ficar durante todo o seu período de aula sentado na sala dos professores, senão você toma falta, a faculdade sabendo que não tem aluno.
Então, é nesses contextos que a gente dá aula, né. A dificuldade da docência é isso, a gente vai trabalhar em um contexto, vai trabalhar em educação em um país que valoriza muito pouco a educação. É mais ou menos, com um pouquinho de humor aqui, é mais ou menos como você escolher ser músico. Escolher ser músico é um grande barato, tocar música, mas para comprar o leite você vai ter que tocar em barzinho, festa de criança, baile de debutante, tem que fazer uma porção de coisas... casamento, aquele cara que toca trompete no casamento, é isso, o cara vai viver disso, né. Mas um pouco da aula é isso também e, claro, eu tenho a impressão de que a gente vai ter sempre nichos bons de aula, de educação, mas como em outros mercados, não é a maior parte, então tem que estar ciente de que a gente vai ter que fazer isso. Por isso que eu digo, acho que a paixão é fundamental, porque eu, várias vezes, descontente com as instituições, ficava pensando que eu gostaria de trabalhar em outro lugar, mas eu não pensava que eu gostaria de fazer outra coisa."
7. O senhor pode nos indicar um ou dois livros de cabeceira?
"Olha, como é para um público da FGV, tem um livro que eu acho que é central para mim né, que eu gostei, um livro que me ajudou muito, vou falar um livro de teoria, um livro que me ajudou muito a fazer uma moldura; para mim me ajudou a pensar melhor essa questão central que eu sinto que é o tipo de ruptura que nós vivemos agora, que, na minha opinião, não é uma transição, é uma ruptura, portanto as categorias mentais que nós tínhamos para pensar o mundo são insuficientes, são inadequadas, então eu recomendaria, do ponto de vista teórico, o “Sources of the Self: The Making of the Modern Identity”, do Charles Taylor. E se der para ler em inglês, melhor, porque a tradução me pareceu penosa, mas pode ser né, e acho que é um dos livros possíveis, tem outros também sobre a crise da modernidade. Mas ele é muito legal porque justamente ele ajuda a gente a entender como a noção de subjetividade que nós temos hoje é uma noção historicamente bastante recente e com limites muito importantes. E eu acho que é essa noção de subjetividade que, de certa forma, está em crise, e, portanto, carrega com ela todas as instituições.
Agora, para ficção, eu sou um apaixonado por Shakespeare, claro, mas eu diria o seguinte: precisa ler ficção, qualquer coisa. Você quer ler Harry Potter, leia Harry Potter, você quer ler, sei lá, o livro que pareça mais besta, leia. Eu adoro Dostoiévski, claro, Albert Camus eu gosto bastante também, tem vários.
O que eu insistiria muito é: leia ficção. Leia, mas sempre esteja lendo ficção. A teoria sem ficção nos emburrece e a incapacidade de imaginar nos impede de realmente compreender a teoria. Então, ficção é fundamental. Até porque ela nos ensina um tempo diferente, um raciocínio diferente, um olhar diferente. A ficção tem essa coisa bonita que é a absoluta inutilidade e eu acho que isso é a coisa mais humana que tem, nós não nascemos para ser úteis. Então, eu acho que a ficção é fundamental e eu não consigo imaginar ninguém que consiga avançar em um trabalho acadêmico denso, sofisticado, que não leia ficção.
Eu fico pensando, quando você pega os caras que são monstros sagrados, quando você pega Marx, você pega Freud, esses caras liam ficção como se não houvesse amanhã. É isso mesmo, é um tempo reservado para isso, assim como eu acho que a gente tem que bloquear um tempo para a nossa família, isso eu acho fundamental, tipo assim, de sábado na hora do almoço até domingo à tarde não tem que responder e-mail, não tem que responder WhatsApp de trabalho, não tem, isso é fundamental, não! Eu fico com as pessoas que eu amo, reservo tempo para dormir, para ver série, para fazer o que eu quiser, mas não, não, não! E a ficção é a mesma coisa. Acho que a gente precisa dela. E claro que está todo mundo cansado e tudo mais, mas, por exemplo, tem uma coisa que é super tranquila de ler que são contos, um pouco antes de dormir, pegue um conto. Tem tantos contistas... a Margaret Atwood é uma contista muito interessante.
Durante a pandemia, minha esposa e eu desenvolvemos um hábito muito bacana que é toda noite ler um trecho de algum livro, nós lemos todo o “Decameron” e depois lemos o “Heptaméron”, da Marguerite de Navarre, muito interessante, e estamos lendo nesse momento “As Mil e Uma Noites”. Então toda noite a gente abre um vinho e lê em voz alta, cada um lê um parágrafo, 6, 7 páginas, faz uma diferença danada. E pronto, para nada, simplesmente porque é bonito."
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