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Entrevista: Michelle Ratton Sanchez Badin



Minibio: Pós-doutora pela New York University (Global Hauser Program, 2007), e doutora (2004) e bacharel (1998) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É professora associada, com dedicação em tempo integral, na FGV Direito SP. Suas pesquisas se concentram na compreensão dos instrumentos jurídicos que sustentam relações econômicas internacionais, a partir do Brasil, e em como os instrumentos do campo do Direito Internacional Econômico pautam outros campos das relações sociais.


Entrevistadoras: Ana Beatriz Guimarães Passos (Doutorado Acadêmico) e Carolina Bianchini Bonini (Mestrado Acadêmico)


A senhora poderia falar um pouco sobre sua trajetória acadêmica? Como se deu seu encontro com a academia, e como a senhora decidiu ir para a área acadêmica? Por que a academia e não a advocacia, por exemplo? Nesse sentido, a senhora poderia falar de alguns momentos mais importantes para a tomada dessa decisão?

Eu venho de um espaço de formação muito intenso e amplo, que é a São Francisco, e este encontro se dá a partir de um misto de interesse e de algumas angústias em relação ao curso de Direito, e também de oportunidades que surgiram, e talvez de um pouco de sorte. Acho que o principal marco que celebra o meu encontro com uma carreira acadêmica foi a minha aprovação no PET-CAPES, um programa de formação na USP. Eu cheguei no PET-CAPES a partir deste espaço em ebulição, mas também com muitas angústias minhas em relação ao Direito, já no primeiro ano. Mas teve, também, digamos assim, alguma sorte de ter encontrado as pessoas certas, até para conseguir participar do processo seletivo do PET. Isso porque, eu voltei do interior na época das inscrições – resolvi voltar para saber o que estava acontecendo na faculdade. Eu não tinha computador, não tinha nada! Cheguei na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, e descobri que o processo seletivo para o PET era naquele dia. Então foi muito casual, e isso foi muito marcante! O PET-CAPES durava quatro dos cinco anos de faculdade, na minha época. Era muito estruturante. Foi quase uma formação paralela à São Francisco para mim, que me foi trazendo também outras oportunidades. Então, já na graduação, eu comecei a assistir algumas aulas da pós.


Eu dei assistência de pesquisa para pós-graduandos (para grupos de pesquisa de pós-graduandos e graduandos). Então, para mim, a pós-graduação não foi uma novidade. Acho que todo o propósito do PET-CAPES era esse: formar pessoas para a pós-graduação no Brasil. Eu consegui preparar meu projeto conversando com pessoas muito legais. Eu lembro que eu bati um papo com a Ana Lúcia Pastore para pensar as metodologias. Então eu já conhecia pessoas que me ajudavam, e conseguia ter alguma autonomia para ir atrás disso.


Eu fiz o Doutorado direto, na São Francisco. Para mim, não era uma questão se eu deveria ou não fazer o Doutorado direto. Tinha o aspecto das vagas e do momento também, havia uma ansiedade de formar essa geração. Então vários de nós fomos para o Doutorado direto. Para as gerações futuras surgiu essa questão sobre fazer ou não o Mestrado antes. Na minha isso nem apareceu. E, depois, nessa trajetória, eu ainda trabalhei por dois anos para juntar dinheiro para fazer o que eu queria, que era passar um tempo fora. Eu apliquei para a bolsa da FAPESP e fiz os outros dois anos do Doutorado com a bolsa. Posteriormente, eu voltei para o Brasil, sempre mantendo muito a conversa com quem estava aqui. Algo que foi especial da minha geração foi essa tentativa de formar pessoas para a pesquisa na área do Direito, e manter essas pessoas no Brasil, para que essas pessoas fizessem suas relações no país. Então havia uma motivação de manter as pessoas por aqui, até por experiências prévias no PET-CAPES, de pessoas que iam para fora e não voltavam. Ou, se voltavam, estavam com a cabeça muito formatada sobre lá fora. Portanto, existia essa estratégia de fazer com que as pessoas voltassem e fizessem suas relações aqui. Para mim, foi muito bom cursar a pós-graduação no Brasil. Não estou falando apenas do conteúdo das matérias, mas sobre manter as minhas relações com esses grupos e com essas pessoas que estavam se formando junto comigo por aqui. E não me refiro apenas a pessoas desse núcleo duro, do PET e da São Francisco, que já é, em si, muito grande, mas também com pessoas interessadas que vinham de várias partes do Brasil. Todos eles são colegas de trabalho até hoje.


Depois, nessa volta para o Brasil, eu me envolvi bastante com o CEBRAP, com o projeto de direito e democracia que estava sendo formado ali. Talvez na minha pós-graduação, o CEBRAP tenha sido o espaço de formação mais importante. Porque, antes disso, eu havia cumprido os requisitos do Doutorado na São Francisco, me beneficiando muito da liberdade que a Instituição dá para você montar grupos, fazer projetos e dar aula. Eu aproveitei todas as oportunidades! Meu orientador me chamou, na banca, de “Dona Flor” (risos). Ele dizia que eu tinha mais de um orientador. Alguns colegas me perguntavam como eu fazia… porque eu trabalhei primeiro no Departamento de Filosofia, depois no Departamento de Direito Econômico, e, ainda, no Departamento de Direito Internacional. Eu nunca me fixei em um departamento ou em um grupo, então eu aproveitava as oportunidades e ia conhecendo as pessoas. E isso era bem gostoso. Eu também fui da geração que teve um pouco de sorte de terem começado esse projeto na minha época.


Quando eu optei pela bolsa da FAPESP, fiz algumas pesquisas de campo e entrevistei pessoas. O Tullo Vigevani, que tinha sido representante do CEDEC e participado com a organização na OMC, foi uma delas. O assunto era muito distante do meu, mas uma das coisas que mais me marcaram na minha conversa com ele foi um pouco essa questão sobre carreira, e, por conta disso, eu suspeito que ele tenha sido meu parecerista da FAPESP. Nunca consegui confirmar, porém eu suspeito porque ele me perguntava “Por que você está indo para a carreira acadêmica? Você pode ganhar tanto dinheiro na sua área, e a carreira acadêmica é muito difícil, você tem consciência do que você quer?” e eu respondi “Eu acho que tenho, eu já advoguei dois anos, fiz estágio antes, tinha trabalhado um tempo na ONU, e acho que é a academia que gosto, quero tentar”. E, na época, ainda não tínhamos essa área na GV, então ele perguntou, “Mas onde você quer trabalhar?”. Eu falei que não sabia, mas que não gostaria de ir para a USP, ao menos “Não na São Francisco”. Isso se deve ao fato de que eu nunca participei de muitos grupos, por mais que eu tenha feito parte do PET-CAPES.


E é engraçado, porque eu vejo essa nova geração, todo mundo falando nessa crise, na falta de financiamento para a educação, na ausência de vagas. Mas, na minha época, isso nem gerava assunto, porque não ter bolsa era a regra; não ter vaga, também. Então, os professores antigos que eu acompanhava na São Francisco eram todos contratados – havia professores que já estavam na faixa dos 50 anos e ainda eram contratados. Não existiam muitas vagas, Brasil afora, mas eu imaginava que podia tentar. Eu estava em um momento de tentar! E, por sorte, esse projeto da GV abriu justamente no momento em que eu estava me formando. Claro, depois teve todo o processo seletivo, que estava alinhado com o meu perfil, mas isso foi um acaso também. E foi aí que eu comecei a minha carreira. Hoje estou falando com os alunos do quinto ano e pensando como eu era no quinto ano. Porque eu queria fazer milhares de coisas, eu nunca quis desenvolver apenas uma coisa na minha vida, e agora estou há 20 anos na carreira acadêmica! Mas é que eu gosto; não sinto a necessidade de ir para outro lugar. Então, acho que esse é um pouco do meu percurso.




E como foi o encontro com o Direito Internacional Econômico? Porque não se trata de uma área muito óbvia nem mesmo atualmente – e talvez, lá atrás, fosse menos ainda... Então como ocorreu esse encontro?


Essa é uma pergunta legal! Porque, assim, eu nunca trabalhei com Direito Internacional Econômico no sentido dogmático da área. Por isso, até hoje, algumas pessoas brincam falando que eu faço “sociologia do direito internacional econômico”. Então, eu diria que o encontro se deu pelo interesse em relações econômicas internacionais e o papel do Direito nessa questão. E, na medida em que me aproximei do tema, tive que me aproximar, também, da dogmática do campo, dando aulas sobre o assunto. No início da faculdade eu participei de um grupo de cidadania, mas senti que todo mundo queria ir para um lugar comum, que era o lugar dos direitos humanos e das políticas sociais. E eu pensava “poxa, ninguém quer ir para o núcleo duro, onde as coisas efetivamente são difíceis e acontecem”. Quando eu trabalhei no escritório de advocacia, também vi isso. E, para mim, até hoje, parecem dois mundos do Direito que não conseguimos juntar: isto é, existe o perfil do advogado estadista, que pensa na política e no direito como instrumento de coordenação social, etc., e existe o advogado privado, que está fazendo a parte técnica. Mas ele não está fazendo apenas a parte técnica, está produzindo, também, algo que impacta no dia-a-dia, na distribuição de renda, em tudo – essa é uma classe muito poderosa. Eu tinha interesse em entender essas relações, compreender como elas são construídas, e o que significam as relações econômicas disputadas no Judiciário. Isso tem um impacto na sociedade como um todo. Então o que me angustia é muito mais amplo do que o objeto em si. Contudo, o objeto me ajuda a ir tangenciando alguns elementos de uma questão maior. Claro, existe algo que é muito particular da nossa área, que é essa coisa da ciência aplicada, que nos obriga a estar, a todo momento, em comunicação. Por mais que você fale “vou para a área acadêmica, vou fazer isso, vou pensar”, esses espaços profissionais estão orbitando e, talvez pela GV, isso seja favorecido. Mas o pessoal de comércio internacional continua me chamando para participar dos eventos, nos quais dou uma contribuição mais de perfil acadêmico, a partir de um outro olhar. Porém, não dá para dizer que esse diálogo não acontece: eu acho que existe essa circulação que fazemos se estamos estudando um objeto específico.


Parece que os escritórios se concentram em vendas e ficam um pouco distantes da academia, parecem mundos diferentes. Por exemplo, alguém que vem falar de desigualdade e não olha para as profissões de elite que reproduzem essas desigualdades, porque o problema não é só com os 50% mais pobres, mas com o 1% mais ricos. É o discurso do Obama, “sei que eles estão pobres, mas a vida deles está melhor do que no século anterior”.


Pensando na sua trajetória, hoje, para quem está entrando na pós-graduação, o que a senhora falaria, o que daria de dicas e conselhos, e o que não faria?

Acho que a primeira coisa é vencer uma expectativa nossa e social em relação ao diploma do Direito. Porque acredito que existe uma expectativa nossa que é estruturante, de que você vai se formar e ganhar muito dinheiro. E as pessoas que vão para determinadas carreiras no Direito, realmente, vão ganhar bastante dinheiro. Então, eu fico pensando que, quem está entrando no Mestrado, agora, passa por um momento de ruptura muito grande em relação ao seu grupo social anterior. Eu vivenciei isso! Passei por momentos em que eu falava “não tenho dinheiro, não vou”. E no começo era muito difícil, mas até hoje isso acontece, porque tenho amigos que estão ganhando muito dinheiro. Mas sinto que algumas coisas não são para mim, porque eu não quero. Eu acho que essa separação talvez seja um pouco dolorosa no começo, é um certo divórcio.


Porém, eu acho que temos uma série de ferramentas intelectuais de compreensão da sociedade que nos ajudam a pensar, com mais consciência, o lugar que queremos ocupar no mundo. E tem gente que faz isso de uma maneira muito automática. Eu vejo os alunos muito angustiados, mas valendo-se um pouco das ferramentas que essa formação proporciona, que é a de ter um olhar distanciado – como um objeto e não só como vítima, ou parte da situação. Essa é a primeira dica: acho que a área acadêmica é uma opção de carreira no campo do Direito que exige abdicar de algumas coisas e ter esse processo de consciência.


A outra dica: eu sempre tentava utilizar o maior número de oportunidades possíveis. Até hoje, eu não me prendo. Eu pensava: “não é porque meu orientador é de um departamento que eu não posso ir para o outro”. Eu sempre tentei entrar em outros projetos, tentar coisas novas. A São Francisco era muito aberta para isso, e a GV também é.


Eu fiz coisas que eu sempre gostei muito, eu criava grupos, propunha aulas e, do jeito que eu enviava a proposta, os professores aceitavam. Foram várias coisas meio que experimentais, mas foi muito divertido, olhando para trás. Então eu diria isso para quem chega: “não apenas aproveitar as oportunidades, mas criar as oportunidades”. Acho que o espaço da pós-graduação é um espaço de criação. E, claro, tem sempre aquela dica de mãe, de que se você vai fazer alguma coisa, vai fazer bem feito, e depois as coisas acabam dando certo. Há momentos de angústia, mas eles existem mesmo, são parte da vida. Eu sempre falo isso na graduação “O diploma que vocês têm, o número de relações que vocês constroem, faz de vocês muito privilegiados nesse espaço”. Eu sou otimista! Acredito que se vocês fizerem seus projetos de forma bem-feita e continuarem conectados com o ambiente acadêmico, as coisas vão dar certo. Outros aspectos que também me marcaram muito nesse processo todo de formação foi ir conhecendo os outros, as outras áreas, as demais possibilidades acadêmicas. Foi muito legal entender o que é a comunidade acadêmica. Acho que isso não nos é passado durante os anos de faculdade. Nós temos as nossas referências, mas não se trata de algo tão bem estruturado.


A senhora já teve dificuldade por ser mulher em uma área predominantemente masculina?

Eu acho que tive menos dificuldade na área acadêmica do que na advocacia e na própria ONU. Mas acredito que existe essa micropolítica que interfere. Há algumas coisas que, hoje, são mais claras para mim, a partir de um repertório do discurso feminista, do que eram antigamente. Então, agora, eu estou muito mais atenta para determinadas situações, como, por exemplo, para reuniões em que uma mulher acaba de falar alguma coisa, é seguida por um homem, e a posição tomada é a do homem. Outra dificuldade que eu tive foi durante o processo do reconhecimento da licença maternidade, já que, na época, isso não era contemplado pelo Lattes. A própria Escola não tinha estrutura: mantinham-se todas as funções anteriores, exceto a de estar dentro da sala de aula, o que era uma loucura. Eu não tive licença maternidade, e ouvi de colegas superiores que “o mundo do trabalho é machista”. Mas tudo depende de cada pessoa individualmente. Depois que meus filhos nasceram, eu fui impondo limites, assim como alguns homens, que são mais participativos na criação dos filhos, também impõem. Tenho um referencial de colegas que estão mais atentos a isso tudo.


Acredito que na relação aluno-professor essa questão seja mais evidente, até mais do que na relação entre pares. Os alunos se apegam a mais bobagens em relação a mulheres do que em relação aos homens – seja quanto ao corpo feminino, seja à forma de estar em sala de aula. Acho que, dentro desse espaço, a discriminação é mais forte. Houve um evento este ano que me chocou bastante: um ex-aluno estava falando de referências na trajetória acadêmica dele na GV e citou quatro pessoas, apenas homens. E nós temos um corpo docente bem dividido entre homens e mulheres na Escola. Essa questão fica bastante evidente na reprodução da fala, em que os alunos focam mais no que dizem os professores homens.


A senhora teria uma recomendação de leitura, que pode ser tanto ligada ao direito e desenvolvimento, quanto uma dica cultural?


Eu gosto muito, pensando nos alunos do Programa, de um trabalho que o grupo da Vera Telles faz, chamado de “Saídas de Emergência”, porque ele sistematiza algumas das nossas angústias, e eu gosto bastante da forma com que as pesquisas foram feitas ali. Fico pensando como seria legal fazer algo nesse sentido na nossa área! Eu também gosto muito de pensar no local e no global, e há dois periódicos que assino que acho interessantes para isso: um deles se chama “The Syllabus”, que fala sobre tecnologias e mudanças, trazendo aportes de vários lugares e recomendações de podcasts; e, outro, que se chama “Critical Legal Thinking”, que também acho bem próximo da nossa área e do que eu faço.

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