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Crises da democracia ou democracias em crise?

Fernanda Cyrineo Pereira

Fernanda Cyrineo Pereira

O fantasma que nos assombra hoje, acredito, é essa última possibilidade: uma deterioração imperceptível das instituições e normas democráticas, a subversão sub-reptícia da democracia [...] Retrocesso, desconsolidação e retrogressão não precisam acarretar violações de constitucionalidade e mesmo assim destroem instituições democráticas. (p. 39)

Adam Przeworski publicou esta obra em um período em que os debates acerca da ins/estabilidade, durabilidade e o possível fim da democracia foram – e ainda têm sido – objeto de muitas publicações[1]. Mas, diferente de alguns atestados de óbito lançados em forma de livro, o autor alerta diversas vezes para a necessária desconfiança das conclusões alarmistas, das causalidades automáticas e das saídas fáceis. Para Przeworski é preciso não sucumbir ao imediatismo, é tempo de pessimismo da razão e de cautela nas análises.


O que esse livro e seus contemporâneos parecem ter em comum é buscar entender um fenômeno recente e aparentemente global: a erosão gradual da democracia operada por vias legais, ou seja, por dentro ou apesar das instituições democráticas. Para encampar essa busca, Przeworski parte de um conceito mínimo de democracia, entendida como um “arranjo político no qual as pessoas escolhem governos por meio de eleições e têm uma razoável possibilidade de remover governos de que não gostem” (p. 29). Para caracterizar crise, o autor resgata a máxima gramsciana com a qual abre o livro[2] e examina os efeitos que diferentes crises – econômica, cultural e política – podem ter sobre a democracia. Não há, portanto, uma única crise, mas uma sobreposição de várias, o que justifica o plural empregado no título.


O livro é dividido em três capítulos que representam três tempos. No passado, o autor busca examinar se o colapso ou a sobrevivência de regimes democráticos podem ser associados a fatores comuns. Para isso recorre a situações concretas de ruptura manifesta (Chile e República de Weimar) e crises políticas contornadas pelas vias institucionais (EUA e França). A conclusão – provisória – é que os sistemas de governo presidencialista tendem a ser mais frágeis e que a economia importa, mas não determina o futuro da democracia. Sua longevidade pode ser associada ao crescimento econômico e a diminuição de desigualdades, mas não há elementos para estabelecer uma causalidade direta entre crise econômica e crise política. Há chaves importantes na história e na cultura, o hábito democrático e a intensidade das polarizações políticas também se relacionam com a durabilidade democrática. Já a respeito das instituições democráticas, o autor aponta, a partir dos casos, que as particularidades parecem ter mais relevo do que características comuns e que não há margens para conjecturas sobre o que poderia ter sido caso as conformações institucionais fossem distintas (p. 104).


Na leitura do presente, o autor persegue possíveis causas daquilo que identifica como sinais da crise: o desgaste dos sistemas partidários tradicionais, o avanço de partidos de extrema direita com matizes racistas e nacionalistas, e a queda no apoio à democracia representada nas pesquisas de opinião. Ao mesmo tempo em que apresenta muitos dados, o autor os relativiza, pois entende que as pesquisas apresentam pistas, mas não significam “prenuncio de qualquer coisa” (p. 129). Ao construir seu catálogo de potenciais explicações, a economia novamente tem centralidade, sobretudo naquilo que chama de “ruptura do acordo de classes” (p. 137). Entretanto, o autor alerta que as razões também se escondem em questões profundas e cotidianas, que se refletem nas polarizações política e social.


Embora o último capítulo da obra dedique-se ao futuro, o autor ocupa-se em aprofundar a leitura sobre a democracia e o papel das intuições no processo de estruturação (p. 179), absorção (p. 182) e regulação (p. 184) dos conflitos.


A democracia funciona bem quando as instituições representativas estruturam conflitos, os absorvem e os regulam de acordo com suas regras (p. 198).

Dedica-se também a caracterizar o desgaste gradual das instituições e normas democráticas, que corroem, em resumo, três principais atributos da democracia: “eleições competitivas, direitos liberais de expressão e associação, e o Estado de direito” (p. 200). Conformando, assim, a gradual e sub-reptícia erosão das instituições.


A obra apresenta as relações entre neoliberalismo e a erosão democrática, o que pode ser referência para pensar os casos dos países do Sul Global e a agenda neoliberal. Porém, há limites quando lida do ponto de vista do Brasil. Para além da ressalva feita na introdução, a Parte I aponta que não são consideradas crises os processos de impeachment que seguem as regras constitucionais (p. 58). Um olhar atento ao processo político brasileiro entre 2015 e 2016 questionaria essa exclusão. Além disso, o autor sugere o desaparecimento dos militares da cena política contemporânea. Nesse caso, a falha de leitura não se dá só do ponto de vista brasileiro, mas também latino-americano.


O livro possui um caráter majoritariamente descritivo, sem apresentar prescrições para o futuro, o que não é necessariamente uma fraqueza. Ao contrário, são ricos os elementos que podem subsidiar tanto as análises de organizações políticas quanto agendas de pesquisa. São valiosos também os alertas de cautela do autor sobre as (im)possibilidades que reunimos em dar vereditos sobre a situação da democracia. A obra falha, no entanto, em realizar uma análise centrada nas “instituições democráticas”; para tanto, seria necessário definir melhor o que o autor entende por elas. É perceptível uma abordagem que se aproxima do neoinstitucionalismo histórico, e, portanto, mais formal. Mas o autor faz referências por vezes vagas, como quando chama o capitalismo de instituição (p. 35), e em outras vezes restrita, como quando relaciona, sobretudo na Parte III, instituições democráticas quase que exclusivamente ao sistema eleitoral.


Por outro lado, o autor demonstra a centralidade em aprofundar a análise a respeito das instituições democráticas na erosão da democracia. Se as instituições democráticas não são suficientes para salvaguardar a democracia, por outro lado fica nítido que os ataques têm centralidade nessas instituições. Ou seja, importa analisá-las em profundidade para compreender suas fraquezas e seus potenciais. Ainda nessa chave, a leitura do livro mostra alguns limites em identificar convergências institucionais nas experiências históricas. Talvez mais do que crises da democracia, o livro contribua para vermos as democracias (em suas singularidades) em crise.



Obra Resenhada: PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. São Paulo: Zahar, 2019.


Referências:

[1] CASTELLS, 2018; LEVITSKY, ZIBLATT, 2018; RUNCIMAN, 2018; MOUNK, 2019; EATWELL, GOODWIN, 2020; APPLEBAUM, 2021.

[2] “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno, uma grande variedade de sintomas móbidos aparece” (GRAMSCI, 1971, pp. 275-6).


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Fernanda Cyrineo Pereira é mestranda no programa de Mestrado Acadêmico em Direito e Desenvolvimento da FGV Direito SP e possui graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008).


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