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Conselho Editorial

"Não ser apenas um receptor, mas sim um provocador": entrevista com o professor Carlos Ari Sundfeld


Minibio: Doutor (1991) e Mestre (1987) em Direito pela PUC-SP, da qual foi professor no Doutorado, Mestrado e Graduação (1983-2013). Na FGV DIREITO SP, de que foi um dos fundadores, é Professor Titular, atuando no Doutorado e Mestrado Acadêmico, no Mestrado Profissional e no Grupo Público. É o presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público - sbdp, criada em 1993, que mantém a Escola de Formação Pública, em parceria com a FGV DIREITO SP. Sócio-fundador de Sundfeld Advogados.


Entrevistadores: Camila Castro Neves e Mateus Stallivieri Costa (respectivamente, mestranda e doutorando na FGV DIREITO SP)


Analisando sua trajetória profissional, notamos que o seu itinerário acadêmico foi direcionado muito em virtude de circunstâncias externas, e menos dentro da faculdade em que você iniciou e desenvolveu o início de sua carreira, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Você concorda com essa observação?


“Sim, concordo. Eu estudei na PUC-SP em uma época em que a área de Direito Público tinha sido muito impactada pela criação dos cursos de pós-graduação, o que havia ocorrido no começo da década de 1970. Não sei se vocês sabem, mas não existia programa de mestrado e doutorado regular nas instituições universitárias brasileiras antes disso. Entrei na graduação da PUC-SP em 1978, comecei o meu mestrado em 1982 e também segui no doutorado lá, terminando em 1991. Então, estou falando de um período de 20 anos vivenciado na universidade a partir da criação dos cursos de pós-graduação.


Os cursos de pós-graduação da PUC-SP foram muito bem sucedidos no início, no sentido de criar um espírito novo que não existia. Vocês podem imaginar o que é criar do zero uma experiência de estudo sistemático pós-graduado? A ideia de pesquisa, de diálogo internacional, foi de fato uma iniciativa bem sucedida dos professores daquela época. Assim, a PUC-SP já era uma excelente escola de Direito Público no período em que iniciei a minha carreira acadêmica como professor em 1983, isto é, assim que me graduei.


Essa graduação, contudo, foi se esgotando a partir do final da década de 1980, pois a instituição não conseguiu se comunicar com outros centros que também tinham iniciado sua trajetória na área, nem ser impactada sistematicamente por eles. Houve um problema de endogenia. Então, aquilo que tinha sido importante por um período para influenciar a mudança do Direito Público, da dogmática, da literatura do Direito Público (e aqui estou falando de constitucional, tributário, administrativo), foi aos poucos se tornando repetitivo, defasado.


Nesse período eu ainda estava no início da minha carreira acadêmica. Então, era natural que fosse buscar outras coisas fora da instituição, porque ela não tinha esse contato com outros pólos, o que me parecia importante. Isso me fez participar de iniciativas de criação de centros para juntar professores de escolas diferentes e fazer intercâmbio com colegas da América Latina. Participei da criação da Associação de Direito Público do Mercosul. Entendo que foi muito importante para todos os envolvidos - uruguaios, argentinos, chilenos, paraguaios, brasileiros - entender as mudanças que estavam ocorrendo, além da conexão com diferentes professores de Direito Público e, em especial, de Direito Administrativo, da Europa, da Espanha e da França (onde eu estive).


Essas coisas não reverberavam no contexto interno da universidade de que eu era professor. Ela tinha conseguido criar coisas positivas, se posicionado como o embrião de pesquisas, com um avanço super importante. Mas, por falta dessa conexão sistemática com outros centros de pesquisa, parou no tempo. Essa foi a razão para eu ter procurado e me envolvido em iniciativas externas a ela”.



Você vem liderando iniciativas de pesquisa coletiva, atualmente conectadas ao Grupo Público da FGV DIREITO SP em parceria com a Sociedade Brasileira de Direito Público - sbdp. Há anos atrás, quando a sbdp foi criada, essa não era uma tendência no meio jurídico. Hoje, contudo, iniciativas dessa natureza parecem estar se disseminando. Quais são suas impressões sobre essa forma de diálogo e produção acadêmica e em que medida isso importa para a formação do acadêmico de Direito?


“Quando a CAPES, que é o nosso órgão regulador setorial dos programas de pós-graduação, começou a atuar mais sistematicamente para melhorar os programas de pós-graduação e elevar o nível em todas as áreas no País, isso na década de 1990, surgiram incentivos para a pesquisa, com o apoio inclusive de bolsas a pesquisadores da FAPESP e do CNPQ.


Nesse contexto surgiu também um programa chamado PET-CAPES, que era uma forma de financiamento, justamente para permitir o incentivo à formação de pesquisadores desde o início (isto é, desde a iniciação científica). Esse foi um esforço sistemático da regulação externa às escolas para impulsionar, no decorrer dos anos, a criação de pesquisadores competentes, especializados e que tivessem experiência de pesquisa coletiva.


Além disso, houve um esforço, de início mais tímido, mas que aos poucos foi aumentando, da CAPES em impedir a endogenia (impedir que as instituições se fechassem em si mesmas). Por meio de uma série de mecanismos, a regulação foi procurando incentivar a junção de pesquisadores de diferentes escolas.


Os programas de iniciação científica na área do Direito começaram na própria PUC-SP, e também na USP, bem timidamente, com alunos provocando professores para fazer pesquisa. Eu orientei alunos nesse contexto e outros colegas também, mas o que sentíamos é que, talvez por falha dos professores, e por não estarem reunidos em grupos de pesquisas sistemáticas, os alunos ficavam muito isolados.


É aí que surgiu, como uma alternativa, criar a Escola de Formação Pública (EF-p) da sbdp, para que os alunos não ficassem isolados. Nós inventamos um modelo original, que é o de uma iniciação científica coletiva sistemática, com a duração de um ano, com essa orientação de unir pessoas de escolas diferentes, algo incentivado pelas instituições reguladoras.


A nossa iniciativa nasceu em 1998 como um programa que precisava ter alunos graduandos das diferentes escolas, para que eles convivessem. Esses alunos teriam contato com professores também de diferentes escolas, além de pesquisadores (pessoas que, ainda que não fossem professores, eram pesquisadores jovens, já graduados). Foi esse o nosso modelo para tentar furar a bolha. Ele foi excepcionalmente bem sucedido. Nós completamos agora, neste ano de 2022, o nosso 25º ano de funcionamento ininterrupto da Escola de Formação Pública da sbdp, e ele tem sido muito relevante para gerar pessoas de qualidade para pesquisa já na pós-graduação.


Além das pessoas terem essa experiência de pesquisa coletiva desde o início, uma formação científica mais coletiva, outro ingrediente importante foi a abertura para outras áreas de conhecimento. Desde o início nós tivemos, por exemplo, aulas de metodologia e técnicas de pesquisa, seminários de pesquisa com professores que não eram do Direito, como da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Fizemos um intercâmbio de professores e eles vieram incentivar o nosso programa.


Isso gerou uma visão, um modo de ser desses alunos da Escola de Formação Pública da sbdp, muito naturalmente aberta para outras áreas do conhecimento, como a Economia, a Administração e a Ciência Política. Com o passar do tempo, a Escola de Formação Pública sbdp passou a ser um fornecedor de talentos para os programas de pós-graduação em diversas áreas, seja na área do Direito, seja de outras áreas.


Outro dia eu conversava com o Professor Rogério Arantes, do Departamento de Ciência Política da USP. Ele pesquisa sobre justiça mas não é um jurista, e dizia que provavelmente foi um dos maiores beneficiados pela existência da Escola de Formação Pública da sbdp, porque ele é um pesquisador, coordena diferentes grupos de pesquisa, e passou a receber pessoas altamente qualificadas para trabalhar com ele. Aliás, ele é um grande orientador.


Essa história mostra que o modelo que a regulação pública vinha tentando incentivar era correto. Mas as faculdades de Direito tinham dificuldades operacionais para fazer coisas parecidas, bem como para se abrir. Na sbdp, com nossa Escola de Formação Pública, conseguimos romper essa dificuldade operacional porque tínhamos uma entidade que tinha nascido em 1993 (e que vai completar 30 anos no ano que vem) para ser o pólo de reunião de professores de diversas instituições, para trabalharem conjuntamente. E ela veio, desde então, nesses quase 30 anos, trabalhando sempre nessa perspectiva, de união de pessoas de diferentes faculdades, e mesmo áreas.


Estou insistindo aqui em elogiar a regulação pública da CAPES pois ela é sempre algo incômoda para nós, regulados, os professores e os pesquisadores. Afinal, ela faz exigências... Mas é uma regulação inspirada nas melhores experiências brasileiras e internacionais de incentivo à formação, à pesquisa e à produção acadêmica. Para avançar, no fundo nós só precisávamos romper as bolhas institucionais, romper uma certa tendência ao fechamento das escolas em si mesmas. Isso conseguimos fazer com a Escola de Formação Pública da sbdp, e com a entidade em seu sentido mais amplo - entidade essa que viria a ser importante inclusive na criação da FGV DIREITO SP, anos depois”.


Você participou da concepção de diversas reformas legislativas, como a reforma da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) em 2018 e, tempos atrás, da Lei Geral de Telecomunicações em 1997, da Lei Paulista de Processo Administrativo em 1998, da Lei de Parcerias Público-Privadas de 2004, entre outras. Parte dos acadêmicos enxerga com receio esse tipo de atividade, temendo, por exemplo, a captura por grupos de interesse. Nesse cenário, como você enxerga o diálogo entre a academia e a proposição de inovações normativas?


“É uma boa pergunta. Em que medida há uma contribuição efetivamente acadêmica na participação de professores e pesquisadores na produção legislativa? Ou até, em que medida é possível haver uma contribuição efetivamente acadêmica, sem que os acadêmicos sejam apenas prestadores de serviço jurídico para grupos de interesse? Eu dividiria minha resposta em duas afirmações.


A primeira é que quem trabalha na academia, como professor e pesquisador, tem uma visão sistemática a respeito do Direito e das áreas específicas do Direito em que se especializa. É uma visão técnica, que pode contribuir para a qualidade das mudanças normativas, para propor mudanças por formas que sejam eficientes, capazes de realizar adequadamente os seus fins. É por esses motivos, inclusive, que tradicionalmente se formam comissões de professores de Direito para sugerir mudanças normativas, porque esses profissionais têm um saber técnico que faz diferença.


Mas há um segundo dado: o acadêmico, ao fazer pesquisas, percebe paradoxos ou transformações que não estão exatamente no radar dos grupos de interesse, mas que demandam intervenções ou podem ser apressadas, segundo certos fins que o próprio acadêmico considera relevantes na sua orientação acadêmica. Exemplo desses fins, no meu caso: o compromisso com a democracia e com o aumento do controle de qualidade sobre a gestão pública. Uma visão não autoritária, de participação social, é diferente daquela que, em décadas anteriores, orientou administrativistas pelo mundo afora. Muitos administrativistas, em diversos países, serviram a regimes autoritários, e eles tinham certamente uma convicção alinhada com o grupo ao qual eles se juntaram.


Embora sejamos acadêmicos e possamos fazer pesquisas o mais neutras possíveis, é natural que tenhamos as nossas orientações. No meu caso, e da geração atual, a orientação predominante é a democrática, uma visão de melhoria da gestão pública para a prestação de serviços sociais. Então esse é um compromisso que no final das contas tem um caráter político, não propriamente partidário, mas que acaba orientando as nossas pesquisas.


Entendo que a nossa atuação como acadêmicos nos dá a possibilidade de, com autonomia, formular propostas que não são demandadas por grupos de interesse, nem são prestação de serviço para terceiros com base em nosso saber técnico. Um exemplo desse tipo de atuação é a nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), uma iniciativa puramente acadêmica e que tinha relação com orientações como as que mencionei acima - de valorização da democracia e da gestão pública - as quais sempre pautaram a minha atuação como acadêmico, assim como do Professor Floriano de Azevedo Marques Neto, com quem dividi a autoria do anteprojeto de lei, e de outros que participaram e apoiaram essa mudança.



Eu creio que a atividade acadêmica não só é compatível com a atividade de proposições de reforma legislativa, mas também bastante útil. Isso porque faz uma espécie de contraponto, na minha área de Direito Administrativo, com as iniciativas de reforma vindas das dentro do Estado. Essas corporações têm suas visões, têm seus interesses; e acadêmicos de fora, sem compromisso com isso, podem contribuir para tentar transformar em norma coisas relevantes para o desenvolvimento da sua área. Outro exemplo em que, na minha experiência, isso também ocorreu, foi a apresentação, em 1991, do anteprojeto que daria origem, em 1998, à primeira lei moderna de processo administrativo no Brasil, a Lei de Processo Administrativo do Estado de São Paulo. Aqui também foi um caso de iniciativa acadêmica bem sucedida, que eu coordenei”.


Como foi a reação dos seus pares acadêmicos à sua participação nesses projetos de reforma legislativa? Sua atuação foi bem recepcionada ou houve resistência?


“Em todas as iniciativas legislativas que eu me envolvi, que produziram, iriam produzir ou poderiam produzir impactos no rearranjo da ideia de Direito Administrativo no Brasil, é claro que houve forte divisão no mundo acadêmico.


Dou um exemplo de algo que está completando 25 anos: a Lei Geral de Telecomunicações (LGT). Ela foi editada em 1997 e fez parte de um esforço de mudança do modelo de prestação de serviços nessa área. À época, uma parcela da academia viu essa solução jurídica com desconfiança; isso por razões puramente políticas, eu diria, porque ela era crítica à privatização, e mesmo a abertura dos serviços públicos à competição - então existia um compromisso, eu diria político, contrário ao programa do governo, que nesse caso orientou e pautou a elaboração da reforma jurídica de que participei. Entendo como natural que uma parte da academia tenha criticado a reforma por razões puramente políticas.

Mas houve também outra parte que, independentemente dessa divergência política, também estranhou as soluções da Lei, e isso por razões que tinham mais relação com cultura jurídica. Não são aspectos totalmente dissociados, mas tinha mais a ver com cultura jurídica. Dou um exemplo: na LGT nós mudamos o conceito de serviço público (e de regime de prestação de serviço público) e houve uma resistência enorme, como se o modelo fosse inconstitucional, incompatível com a tradição dogmática brasileira. A lei foi alvo de fortes críticas e muito debate, durante anos, na academia.

O modelo da LGT acabou vencendo e sendo aceito como evolução natural necessária, não só por conta do sucesso do programa de privatização de telecomunicações e da universalização dos serviços, da abertura à competição bem-sucedida, mas também porque era uma evolução que fazia sentido no novo período histórico, não só no Brasil, mas no mundo todo. Então, os acadêmicos que criticaram nossas orientações naquele momento, a meu ver, estavam conectados ao modelo passado de Direito, que por sua vez estava ligado a uma situação econômica também do passado, incapaz de atender às novas necessidades da vida econômica mundial.


A LGT é um exemplo dessa "polêmica" acadêmica, mas eu poderia dar muitos outros para dizer que sempre houve muita polêmica, muita resistência, muito debate e muita crítica a todas as mudanças normativas que vingaram. A Lei de Processo Administrativo, o novo modelo de prestação de serviços públicos, o modelo de agência reguladora, e depois as soluções da nova LINDB… Mas isso é natural, a academia é polêmica, nós estamos aqui exatamente para tentar fazer dessas polêmicas um instrumento para aprimorar o nosso conhecimento e a nossa realidade. Isso é importante, polêmica é importante”.


Ainda nesse tema de conciliar a academia com outras atividades, você também se dedica à advocacia privada e antes já se dedicou à advocacia pública, na Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP). Com base na sua experiência, qual o papel da academia na prática jurídica? E o papel da prática jurídica na academia?


“A atuação como advogado público, e depois advogado privado, me ajudou a ter contato com questões que eu jamais teria visto a tempo, caso me dedicasse exclusivamente à atividade acadêmica, pelo menos no contexto em que eu vivi minha carreira nos primeiros anos. Me ajudou a ter uma conexão com o mundo real e com seus paradoxos, o que foi importante para me dar maturidade.


Quando comecei minha carreira, tinha claro que meu objetivo de vida era ser professor. Mas havia, além da necessidade de conexão com o mundo real, uma dificuldade adicional, pois não havia à época no Brasil um ambiente estritamente acadêmico capaz de absorver a totalidade da energia e do tempo de um jovem professor. Havia um problema de inviabilidade, inclusive financeira; ninguém podia viver apenas na academia. No início dos meus anos como jovem professor foi assim que as coisas aconteceram… Fiz reclamação trabalhista, por exemplo, para pagar as minhas contas.


Mas aos poucos consegui fazer algo que foi importante para mim: transformar minha atividade profissional paralela à academia em instrumento desta. Há muitas décadas consegui focar minha atividade profissional apenas em consultoria em Direito Público e Regulação. Deixei a advocacia pública; fui até o último estágio da carreira, mas pedi exoneração ainda jovem. No mundo privado, foquei na consultoria em questões públicas, o que me permitiu apoiar, inclusive financeiramente, a construção de um ambiente acadêmico.


Minha consultoria privada foi financeiramente importante para a criação e para a manutenção da sbdp nos primeiros anos. Também como um espaço de pesquisa: meu escritório tem mais pesquisadores que vêm aqui para usar o espaço cuidando de projetos acadêmicos, e exclusivamente deles, do que advogados propriamente ditos. Então, minha atividade como consultor, e meu espaço físico profissional, acabaram sendo para mim um modo de reforçar o ambiente acadêmico.


Por isso houve duas relações importantes entre academia e advocacia para mim. Uma foi conseguir recursos e meios para melhorar a atividade acadêmica. Outra foi a conexão com o mundo real. Hoje a academia ainda enfrenta o desafio de manter seus professores em tempo integral, são poucas as instituições que têm um quadro integral rico o suficiente, com volume suficiente para permitir que o professor, ainda que esteja exclusivamente dedicado à academia, possa ter uma visão ampla, um contato com o mundo real mesmo que não seja atuando como advogado.


Essa é uma realidade relativamente recente. A FGV DIREITO SP foi bem sucedida, o INSPER está fazendo um trabalho assim, algumas instituições públicas têm, em certas áreas, professores com dedicação exclusiva que estão criando esse ambiente. Mas é algo ainda embrionário na área jurídica. Então, pelo menos nos primeiros tempos de minha carreira, em que nada disso existia, conciliar a academia e a advocacia foi o caminho que me permitiu construir uma carreira de professor com o suporte que as próprias instituições universitárias não conseguiam dar”.


Nós que já tivemos oportunidade de ler seus textos, te ouvir ou, na qualidade de orientandos, de ter nossos trabalhos corrigidos por você, sabemos que seu raciocínio é claro, o quanto você preza e valoriza uma linguagem clara, direta e simples. Quais são as experiências que te ajudaram a desenvolver esse estilo?


O que me marcou muito, na minha formação pessoal e intelectual, foi a imprensa. Desde o início, ainda como menino, me fascinei pela imprensa, pelos jornais e revistas. Tanto que, ainda jovem, quando fui escolher uma profissão, decidi que queria ser jornalista, e de fato iniciei a faculdade na Escola de Comunicações e Artes da USP. Não terminei e não me tornei jornalista, mas essa conexão com o mundo da imprensa eu nunca abandonei.


A conexão com a imprensa fez com que eu me fascinasse com a possibilidade de falar como um jornalista, escrever como um jornalista, de me comunicar como um jornalista - isto é, como um profissional de comunicação. Essa é uma característica que aparece nos meus textos e no modo como falo. Nem todos os meus colegas são assim: existem pessoas cuja formação foi mais voltada para a absorção de conteúdo de uma forma mais acadêmica, que foram alimentando esse conteúdo com uma vivência exclusivamente acadêmica, com pouco contato com a imprensa.


Por outro lado, tive sempre um enorme contato com todo esse mundo da imprensa, como leitor e depois como alguém escreve regularmente, fala muito com jornalistas, ajuda a fazer pautas nos veículos de comunicação etc. Essa vivência foi importante para mim, e também bastante relevante para que eu tivesse, sobre a atividade docente, uma visão talvez um pouco diferente da predominante nas escolas de Direito, ao menos no período em que me iniciei como professor. Tradicionalmente o professor de Direito tinha pouca preocupação com o sucesso da comunicação com o aluno. Ele se mantinha na faculdade de Direito, em paralelo com a sua profissão não acadêmica, como um modo de aumento da erudição, mas pouco focado na didática propriamente dita.


No meu caso, fiquei fascinado desde o início pela possibilidade de ser um professor no sentido de estabelecer uma comunicação com os alunos. Tornei-me professor aos 23 anos de idade, muito preocupado em transformar a sala de aula em um ambiente estimulante para os alunos, em que os alunos fossem realmente envolvidos. Esses dois lados - o modo de ser da imprensa e o desejo de ser professor, e não exatamente um erudito que compartilha sua erudição com os alunos - é que formataram minhas características e o meu modo simples (às vezes até um pouco simplório) de comunicação e de produção”.


Quais habilidades você considera que precisam ser desenvolvidas por um bom acadêmico, seja para se preparar eventualmente para a docência, seja para integrar uma rede de pesquisa?

“O acadêmico da hoje, na área do Direito, enfrenta um novo desafio, que é o de se conectar a redes sofisticadas de pesquisadores no mundo todo. Isso significa aprender um modo de produzir conhecimento que seja compartilhado pelos seus colegas de fora. É preciso absorver as técnicas de pesquisa, por exemplo, que estão sendo usadas pelos seus colegas, até para que se possa fazer pesquisas paralelas que dialoguem. É um esforço de inserção em ambientes coletivos de trabalho.


Nesses ambientes coletivos virtuais - há pesquisadores que estão na Austrália, outros na Escandinávia, na África, no Brasil, todos tentando produzir coisas em conjunto - é importante conseguir ter uma linguagem comum e um método de trabalho comum. Eu diria que isso é um grande desafio, que no passado não se colocava da mesma forma.

Aquele que queira ser um acadêmico começando a sua trajetória hoje, em qualquer área do Direito, tem esse desafio da conexão com a linguagem, com a forma, com uma técnica comum. Sem, claro, que isso tudo signifique que você seja um mero reprodutor, um pouco envergonhado por ser do terceiro mundo, das agendas de pesquisa dos ambientes acadêmicos mais ricos (como os países da Europa, os Estados Unidos).


Como nós podemos conseguir, sendo brasileiros, posicionar temas ou técnicas que sejam relevantes para nós e que não façam parte das preocupações da nossa rede potencial de colegas estrangeiros? Esse é um grande desafio, e que vale ser enfrentado. Caso contrário, seremos apenas membros de uma rede internacional, cuidando das agendas dos outros. Existe a luta da auto afirmação do nosso País, do nosso mundo, em termos de agenda e de preocupações. Esse é um desafio. E acredito que é preciso se preparar para ele. Não ser apenas um receptor, mas sim um provocador. É importante provocar”.


Nossas próximas perguntas têm relação com as tendências do Direito Público. Essa focaliza no contexto atual do Direito. Depois de 1988, o Direito Constitucional parece ter virado protagonista e se alastrou pelas outras áreas do Direito. Mas hoje quando olhamos os principais debates no noticiário, o Direito Administrativo também está presente. Parece então haver grau maior de maturidade da sociedade de maneira geral em relação aos grandes conflitos sociais que envolvem as dinâmicas da Administração Pública e do controle. Dessa forma, o Direito Administrativo estaria assumindo um protagonismo maior. Você concorda ou discorda dessa observação?


“Sim. Na minha visão, a mudança que ocorreu no Direito Administrativo tem muita relação com a mudança do país. Em primeiro lugar, a Administração Pública brasileira cresceu, apesar do debate político dizer que os governos nas últimas décadas acabaram privatizando o Estado e que tudo é privado; essa é uma visão muito conectada ao partidarismo. Mas a verdade é que o Estado cresceu e se organizou de uma maneira que nunca existiu na história brasileira.


Em matéria de serviços sociais, por exemplo, a presença do Estado em áreas de saúde e de educação mudou completamente. Em todas essas áreas, em que o Estado foi ampliando sua atuação direta ou indireta (por exemplo, através da regulação dos setores privados), foi natural que aparecesse e aumentasse gradativamente um corpo de normas e de questões dogmáticas que não existiam, bem como de conflitos que se judicializavam. O Direito Administrativo aumentou na medida em que aumentava a presença do Estado e, com isso, o conjunto de normas que regulam sua atuação.


Por outro lado, a expansão do Direito Administrativo também tem a ver com a democracia, fenômeno que tem duas causas na nossa realidade. A primeira causa da democracia foi a urbanização. Olhem quantas pessoas viviam no campo: antigamente, o Brasil era um País com baixa densidade urbana; a partir da década de 1960 isso mudou completamente, as pessoas mudaram para as cidades e se tornaram cidadãos, como as pessoas que moravam no campo jamais conseguiram ser. Os cidadãos têm interesses, conflitos e vão em busca de seus direitos previdenciários, direitos de assistência à saúde na justiça e na Administração Pública. Tudo isso envolve questões de Direito Administrativo, sem contar os conflitos de Direito Ambiental e Urbanístico que vem dessa urbanização.


A urbanização então fez com que as pessoas se tornassem atuantes, cobrando a democracia. A partir de 1985, quando acaba o regime autoritário brasileiro, surgem, inclusive, muitos incentivos para que as pessoas participem, se conflitem mesmo. Pessoas estão lutando por um certo tipo de prestação do Estado, por um certo tipo de regulação, então houve um crescimento das questões administrativas e naturalmente do Direito Administrativo.


No passado, até a década de 1960 mais ou menos, o interesse pela área administrativa era ligado a setores muito específicos. Hoje o interesse é multissetorial: todos os setores da sociedade têm conexões profundas com o Direito Administrativo, de maneira que eu tive a felicidade de escolher a área certa. Em suma, a área que eu escolhi se mostrou uma área crescente, isso fez com que eu sempre tivesse muito estímulo em minha carreira de administrativista”.


Passando para uma outra possível tendência do Direito Público e Administrativo… O acadêmico do Direito cada vez mais tem que se esforçar para tornar seus textos mais acessíveis, ser mais direto, comunicar com mais facilidade. Sites como o JOTA e o CONJUR, além do crescimento de podcasts, ganham protagonismo na disseminação de ideias. Como você vê esse processo de mudança na forma de produção jurídica?


“Não é só no Direito que isso ocorre; é um processo que atinge todas as áreas. Na área de saúde, por exemplo, o debate envolvendo pesquisas científicas é um debate público, levado constantemente aos blogs ou jornais. O debate público envolve também as grandes questões jurídicas, por conta da democratização que mencionei. As pessoas agora têm mais cultura, têm mais informação, pois estão nas cidades. O público interessado pelos assuntos dessas áreas, como Direito ou saúde, aumentou, e naturalmente os profissionais dessas áreas têm que se comunicar de uma forma adequada.


Existem especialistas dessas áreas focados na comunicação jurídica e econômica. Mas existem também muitos que fazem as duas coisas: ao mesmo tempo que produzem artigos para as revistas qualificadas (requisitos para os professores da pós-graduação), também traduzem para o público em geral os debates envolvendo sua área de atuação (que aparecem por meio de veículos de comunicação como rádio, podcasts, jornais, blogs).


Acredito que isso é natural, está em todas as áreas e tem um impacto interessante que a própria academia pode tentar medir. Em que medida a academia hoje se pauta mais pelos artigos sobre economia que produz um bom acadêmico comunicador em seu blog? Em que medida a capacidade de pautar desses textos de comunicação é maior do que os livros e artigos publicados em revistas?


Eu não tenho como medir isso nas outras áreas. Mas na área do Direito Público, hoje, de fato, os livros e os artigos estritamente acadêmicos têm pautado menos do que os bons artigos em veículos, como o JOTA. Os debates surgem nas salas de aula em torno desses veículos e acabam eles próprios levando a mudanças de agendas de pesquisa no ambiente mais estritamente acadêmico. É uma hipótese interessante para investigar: fazer uma pesquisa baseada em um certo meio de comunicação importante, mapear quais temas de uma certa área (como do Direito Administrativo) aparecem, quem escreve sobre esses temas e em que medida seu conteúdo antecipa coisas que depois vão aparecer nos artigos das revistas qualificadas, nas revistas A1. Isso é uma boa pesquisa empírica para se fazer”.


Para além das mudanças na forma de produção jurídica, também há quem enxergue um movimento do estilo mais "tradicional" de Direito Administrativo para um "novo" estilo, mais chegado ao empirismo, ao pragmatismo, ao realismo e dialogado com outras áreas do conhecimento. Vemos que você, de certa forma, já havia trabalhado com ideias parecidas no seu livro Direito Administrativo para Céticos (Ed. Malheiros). Você concorda com essa observação? Você vê potencial em um diálogo mais próximo entre o Direito Administrativo e outras áreas do conhecimento?


“A resposta é sim. Nós vivemos várias fases anteriores na vida acadêmica jurídica que acabaram fazendo com que o mundo jurídico se fechasse muito. Mas isso foi mudando aos poucos nas últimas décadas e a academia jurídica se abriu para outras áreas do conhecimento.


No início, a academia jurídica era muito fechada porque ali se formava a elite do poder nos Países - no Brasil inclusive. Nas décadas de 1970 e 1980, com a criação dos programas de pós-graduação de Direito, surgiu uma preocupação em dar um status científico para a área jurídica, a fim de afirmar a autonomia do Direito como ramo do conhecimento tão científico quanto a Biologia e a Física, por exemplo. Nesse caso, o fechamento era uma coisa menos ligada a status político, como no passado, e mais ligado a status intelectual.


Mas isso mudou posteriormente. Por influência inclusive dos movimentos internacionais que tinham começado antes, a área do Direito naturalmente começou a ter relações intensas na produção intelectual com as outras áreas do conhecimento, como Economia e Ciência Política. Então é verdadeira a observação de vocês que hoje o jurista dialoga muito com outras áreas, de uma maneira como nunca se dialogou antes na nossa experiência brasileira.


Com relação ao estilo da produção jurídica, há outras coisas que também têm a ver com a mudança mencionada aqui, a de um direito menos fechado e com conhecimento mais interdisciplinar. Isso aparece no meu livro Direito Administrativo para Céticos: o Direito como área menos hermética, que é uma tentativa de aumentar a comunicação com outros campos - e de influenciar com ideias - de um Direito mais conectado com a realidade, com a gestão pública, preocupado com o mundo real.


A ideia é estimular uma visão mais empírica, mais pragmática e menos retórica. Sempre foi muito forte a tendência à retórica na área do Direito, então fiz propositalmente desse livro uma espécie de experiência, de provocações múltiplas (algumas muito provocativas, é verdade, mas é proposital). Essa é uma coisa que, a meu ver, precisava ser feita, então apostei nisso, não tem nada a ver com o estilo tradicional de livro jurídico”.


Passando para perguntas mais gerais, gostaríamos de saber qual tipo de conteúdo você costuma consumir que não seja da área jurídica. Pode ser música, podcast, filme, o que quiser.


“Como eu disse, fui muito ligado desde o início da minha juventude à imprensa, sou um assinante de jornais. Mas sempre fui bastante eclético naquilo que consumo. Tenho uma grande ligação com a música também desde o início. Ela sempre esteve bem presente na minha vida, aparece no meu livro Direito Administrativo para Céticos em muitas referências, é uma maneira de ter estímulos. A arte também: minha mulher é diretora de museu, então nós temos uma vida familiar muito aberta para aquilo que eu chamaria de universo geral da cultura.


Diria que embora a minha profissão de professor me conecte muito com a linguagem jurídica, com a cultura jurídica, a cultura mais geral é o que ocupa a maior parte do meu tempo. A cultura mais geral, suponho, de alguma maneira molda um pouco a minha visão de mundo, o jeito que escrevo, o jeito que falo. Sou menos ligado à comunicação visual dinâmica, como a televisão e o YouTube, e mais ligado à comunicação visual fixa, como as artes plásticas tradicionais, além da linguagem escrita”.


Quanto à sua paixão por música, consegue escolher um conjunto ou uma banda?


“Tive um problema na minha vida, desde o início. Por ser apaixonado por música, nunca fui muito popular na escola, porque ninguém entendia as coisas que eu gostava. Para dar um exemplo, gosto muito do Dorival Caymmi. Ele era um compositor que já na minha infância era um senhor, de uma época passada. Imagine meus colegas curtindo Rolling Stones e eu atrás dos shows do Dorival Caymmi…


Eu diria que a Bossa Nova é o meu mundo. Se eu fosse escolher um grupo, seria o grupo que uniu a família Caymmi e a família Jobim, e que fez com que eles produzissem muitas coisas juntos. Eu diria que é um tipo de sonoridade que esteve presente na minha vida desde o início, desde quando era menino, e que está presente até hoje. Vejo até meus orientandos, meus colegas jovens, depois de uns anos se fascinando também por esse tipo de som, e acho divertido, pois talvez mostre é um som bom mesmo, e que eu não estava tão louco quando aos 12 anos de idade corria atrás dos discos dessa gente”.


Para finalizar, você pode nos indicar um ou dois livros de cabeceira?


“Acabei de desmontar a biblioteca da minha casa antiga. Estava mudando para uma casa pequena e tive que passar por tudo que tinha sobrado na biblioteca, que na casa antiga ocupava um andar inteiro. Era muita coisa… Ainda tive que abrir mão de algumas coisas, então está muito presente na minha cabeça tudo que li nesses anos e foram minha paixão.


Um livro que me marcou muito nos últimos anos é O Impostor, do autor espanhol contemporâneo chamado Javier Cercas. Eu diria que ele é hoje o grande escritor espanhol. Ele tem um estilo que mistura um pouco de jornalismo com a literatura, faz dos livros uma espécie de investigação jornalística, e muito preocupado em olhar para a história das pessoas. Tudo isso conectado com a política, com a transformação política e os conflitos políticos da Espanha.


Os conflitos políticos da Espanha, narrados por ele, me remetem aos conflitos políticos do Brasil, inclusive os que hoje estão muito agudos. A Espanha teve um choque violentíssimo apresentado pelo franquismo de um lado e pelos republicanos do outro, que marcou gerações da história espanhola. A Espanha, ainda, se redemocratizou antes do Brasil, e sua experiência bem sucedida influenciou inclusive a nossa, anos depois. Eu sinto a Espanha muito conectada com o Brasil e também tive sempre muito contato com o direito administrativo espanhol, de maneira que aquilo que o Javier Cercas escreve, embora seja sobre a Espanha, para mim tem muito a ver com o Brasil.


O Impostor é um livro excepcional, imperdível como literatura contemporânea. O livro conta a história real de um homem que aparece na Espanha, na passagem para a democracia nos anos 1970, como um sobrevivente do holocausto. O homem vai se tornar uma personalidade pública, relatando sua história como sobrevivente e depois participando de movimentos reivindicativos. Até que ele é desmascarado: jamais tinha sido vítima do holocausto, ele era um impostor. É uma história excepcionalmente bem escrita e que lida com grandes questões humanas, como essa síndrome do impostor que todos nós temos um pouco. É um escritor excepcional.


Como literatura jurídica, sugiro o Eduardo Jordão, professor da FGV Direito Rio que acaba de publicar o livro Estudos antirromânticos sobre controle da Administração Pública (Ed. Juspodivm), no qual ele reúne vários de seus trabalhos, que tenho lido nesses anos todos, sempre com muita força. O livro traduz o modo de ver o Direito Administrativo que tenho, vindo de alguém mais jovem que eu, brilhante, competente, de uma geração de gente muito qualificada. Jordão expressa um novo estilo, uma preocupação em fazer dogmática de forma mais conectada com a pesquisa empírica, com o pragmatismo”.

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